O
Medalhão de Ouro
«(…) Capuz atirado para a nuca, segurando
na mão uma cana que não nos metia medo, o caracol ruivo na testa a atrair-nos a
atenção, ensinava-nos a doutrina. Nessa época, estaríamos ai por volta de 1534,
ainda não tinha reunido o Concilio de Trento para sair a terreiro contra o
protestantismo que campeava na Europa. Ainda não havia surgido a nova formulação
da doutrina, a remodelação dos métodos de ensinar que haviam de esclarecer os
espíritos perturbados e incautos em face da heresia que alastrava. Não
tardaria, com efeito, em resultado dessa esforçada e ingente mobilização dos mais
doutos cérebros da Cristandade, a ver-se chegar aos prelos das nações católicas,
em extraordinária profusão, as teses, os sermões, as homilias, os novos missais,
os compêndios e esses pequenos livros, maravilha de síntese de toda a doutrina,
que eram os catecismos. Bem me lembro de ver e folhear essas novidades nas
bancas dos livreiros nas ruas buliçosas de Roma, de Veneza, de Trento, por toda
a Itália. Grande impulsionador desse esforço de publicar os resultados do
concílio, para os pôr em acção, foi o arcebispo de Milão, Carlos Borromeu, ele
próprio autor de um catecismo que veio a lume em 1566, e no nosso Portugal
recordo o zelo incansável de frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo e senhor
de Braga, primaz das Espanhas, que, entre outras obras de cristianíssima
doutrina, publicou em 1564 naquela cidade, por mandado de el-rei e em casa do tipógrafo
régio António Mariz, um catecismo ou doutrina cristã e práticas espirituais,
para uso não só dos sacerdotes que têm cargo de almas nas igrejas de sua
obrigação, mas ainda dos mestrados de Santiago e de Avis, obra que foi depois
várias vezes reeditada em Coimbra e em Lisboa. Eu e os livros entendemo-nos.
Somos irmãos de solidão. Falo com eles e eles comigo.
Chamam-me. Uma ocasião entrei em
casa do imprimidor Marcos Borges, que tem oficina ali por detrás da Ermidinha
de Nossa Senhora da Palma, e de uma estante em que se enfileirava com outros
ele chamou por mim, como se me puxasse pela manga, quando eu folheava outras
obras: então não o via? O seu autor era meu conhecido e amigo, o arcebispo de
Braga ... Também aí me chamou a atenção com insistência a Cartinha para Ensinar a Ler, com os
Mistérios de Nossa Santa Fé, de um outro amigo meu, douto
teólogo, frei João Soares, bispo de Coimbra e conde de Arganil. Obra maneirinha
e leve, que se pode trazer na algibeira ou na manga do hábito e não como essas
outras pesadonas, grossas, incómodas, que encontramos nas bibliotecas
acorrentadas às estantes, pobres livros agrilhoados!... Outro catecismo, agora
de Nossa Santidade o papa Pio V, pôs-se-me aos gritos a chamar por mim ao
passar eu um dia pela Rua dos Espingardeiros, em frente da casa do livreiro
João Lopes. É uma obrinha que por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo
Metropolitano arcebispo de Lisboa, o senhor Miguel Castro, foi tresladada do
latim em linguagem pelo doutor em Teologia padre Cristóvão Matos e publicada na
oficina de António Álvares, impressor do arcebispo.
Era uma das minhas muitas
fraquezas essa do apego aos livros, mas acontecia que, quando eu saía a
calcorrear Lisboa, sempre acudia alguém, o abade, o bibliotecário, a
incumbirem-me de adquirir livros que iam enriquecer a livraria do convento.
Agora sei que não era ocasionalmente. A doutrina, portanto, naquela época da
minha meninice, era-nos ministrada à maneira velha e tradicional, cujas bases e
orientação radicavam em obras muito antigas, como o tratado de nosso padre
Santo Agostinho, De Catechisandis rudibus,
os Discursos Catequísticos,
de São Cirilo, a Oração
Catequética, de São Gregório de Nissa. Muito da antiga
tradição oral dos ensinamentos persistia, embora e já cada vez mais apoiada em
textos sagrados que o leitor nos fazia ouvir e comentava em escólios
conceituosos. Eram crescentemente evidentes os frutos que se estavam tirando
dessa nova e maravilhosa invenção que é a arte da impressão de livros. Dizem alguns
que é pau de dois bicos: os inimigos da nossa santa religião também escrevem e
não desfalecem de publicar as suas ideias aleivosas e de assaltar a fortaleza
da Fé! Bem as vi, nas terras por que passei, essas obras que saíram da pena de
um Lutero, de um Zwínglio, de um Calvino e de outros autores». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
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