sábado, 11 de agosto de 2018

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «Ainda é da verdadeira fé, Katherine?, Mary pergunta, baixando a voz para um sussurro embora não haja ninguém mais no quarto além de Meg, sem jeito atrás da madrasta»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Bem, então Meg não seria apropriada. Ela está cheia de sangue Plantageneta, diz Anne. Pode até ser, mas eu a consideraria uma boa esposa, não uma esposa ilustre. Verdade, diz Anne. Meg afasta-se das tapeçarias e vai sentar ao lado delas. O grupo de damas observa-a de cima a baixo quando passa, sussurrando. Viu seu pai, Meg?, pergunta Anne. Vi. Tenho a certeza de que era ele, no campo de batalha ao lado do rei. Susan Clarencieux causa um alvoroço ao sair do quarto de Mary, anunciando no seu tom particular, mandão mas ainda assim calmo: ela vai-se vestir agora. Virando-se para Katherine, diz: pediu que você escolha os trajes dela. Katherine, percebendo o tom contrariado, responde: o que recomenda, Susan? Algo sóbrio? Ela parece mais calma. Ah, não, acho que algo para alegrá-la. Tem razão, é claro. Alguma coisa colorida então. O rosto de Susan se contorce num sorriso desconfortável. Katherine sabe como lidar com damas da corte arredias e suas inseguranças. Aprendeu com a mãe.
E outra coisa, continua Susan, enquanto Katherine alisa o vestido e ajeita a touca, ela quer que lhe apresentem a menina. Katherine assente. Venha, Meg. Não podemos deixá-la esperando. Eu preciso ir?, sussurra Meg. Precisa, sim. Katherine apanha o braço de Meg de forma bem mais brusca do que pretendia, desejando que a garota fosse menos gauche, em seguida se repreende internamente pela sua falta de amabilidade e acrescenta: ela pode ser a filha do rei, mas não deve temê-la. Verá. Passando a mão pelas costas de Meg, nota quão magra ela ficou, os ossos dos ombros protuberantes como pontas de asas. Lady Mary está no quarto afundada em um vestido de seda. Tem uma aparência frágil e inchada no rosto; a juventude parece tê-la desertado completamente. Katherine faz as contas mentalmente, tentando lembrar quão mais nova Mary é do que ela. São só uns quatro anos, pensa, mas Mary parece murcha e tem um brilho febril nos olhos, o legado do tratamento que recebeu do pai, sem dúvida. Agora pelo menos ela vive na corte, onde pertence, e não está mais presa num palácio distante, húmido e frio, escondida do mundo. A sua situação permanece delicada, entretanto, e, desde que o seu pai despedaçou o país para provar que nunca tinha realmente sido casado com a sua mãe, a pobre Mary tem a mancha da ilegitimidade pairando sobre si. Não surpreende que se atenha à antiga fé, a sua única esperança de legitimidade e de um bom casamento.
Sua boca fina se transforma num sorriso de saudação. Katherine Parr, ela diz. Como estou alegre em tê-la de volta. É de facto um privilégio estar aqui, senhora, Katherine responde. Mas só vim para o baptismo de hoje. Disseram-me que será madrinha do novo bebé Wriothesley. Só hoje? Que decepção. Devo respeitar um período de luto por meu marido falecido. Sim, Mary diz em voz baixa, então levanta a mão, fecha os olhos e aperta o espaço entre as sobrancelhas por um instante. Está sentindo dor? Posso preparar alguma coisa, diz Katherine, inclinando-se para passar a mão na testa de Mary. Não, não, tenho tonturas mais que suficiente, responde ela, sentando-se erecta e respirando fundo. Se eu massajar as suas têmporas, pode aliviar a dor. Mary faz que sim, então Katherine fica de pé atrás dela e pressiona as polpas dos dedos nas laterais da sua cabeça, movendo-as em círculos. A pele ali é fina como pergaminho, revelando um istmo de veias azuis. Mary fecha os olhos e apoia a cabeça na barriga de Katherine.
Senti muito ao saber de lorde Latymer, Mary diz. Muito mesmo. É bondoso da sua parte, senhora. Mas, Katherine, vai voltar logo para servir nos meus aposentos…, preciso de amigos. Há somente a sua irmã e Susan em quem posso realmente confiar. Quero estar cercada de mulheres que conheço. Há tantas damas aqui que nem sei quem são. E partilhámos um tutor quando crianças, Katherine, sua mãe serviu minha mãe. Sinto como se fôssemos quase parentes. Fico honrada que a senhora pense em mim dessa maneira, Katherine responde, somente então percebendo quão solitária a vida deve ser para uma mulher como Mary. Ela deveria ter-se casado muito tempo atrás com algum magnífico príncipe estrangeiro, dado a ele um bando de principezinhos e aliado a Inglaterra a alguma terra grandiosa, mas foi empurrada de um lado para o outro, ora nas graças do rei, ora não, legítima, ilegítima. Ninguém sabe o que fazer com ela, menos ainda seu pai.
Ainda é da verdadeira fé, Katherine?, Mary pergunta, baixando a voz para um sussurro embora não haja ninguém mais no quarto além de Meg, sem jeito atrás da madrasta. Sei que seu irmão está comprometido com a Reforma, a sua irmã e o marido também. Mas a Katherine, foi casada muito tempo com um lorde do norte e a antiga fé ainda se mantém forte por lá. Sigo a fé do rei, Katherine responde, esperando que nada seja depreendido de sua inexactidão. Sabe muito bem como as coisas são no norte no que diz respeito à fé. Não consegue pensar nisso sem sentir as mãos ásperas de Murgatroyd sobre si, o seu mau cheiro. Tenta afastar esse pensamento, mas ele persiste. A fé do meu pai, Mary diz. Ele ainda é católico de coração, embora tenha rompido com Roma. Não é mesmo, Katherine? Katherine mal a escuta, não consegue evitar a lembrança do seu bebé morto, os olhos pretos abertos, o olhar inquietante lembrando-a de onde viera. Mas se recompõe, respondendo: é verdade, senhora. Questões de fé não são mais directas como costumavam ser». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.

Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT