«(…) Compreendi que ela passara demasiado tempo calada. Ficámos
amigas. No dia em que teve alta fui buscá-la de carro à entrada do hospital e
fomos comemorar o seu regresso à vida, o seu renascimento como ela gostava de
dizer. Ocupámos duas cadeiras numa esplanada de Montmartre, não longe da
basílica do Sagrado Coração onde ela assistia religiosamente, todos os
domingos, à missa das cinco, seguida de um concerto de música barroca. Ainda
não vos disse que entre mim e Raquel não havia praticamente nada em comum.
Éramos seres radicalmente opostos. No entanto, ambas apreciávamos com o mesmo
deleite, a música do período barroco, todas as paixões de Bach. Ela adorava
Haendel eu preferia as sinfonias de Hayden, o que não nos impedia de ir juntas
aos concertos de ambos. Fora isso, desconhecíamos tudo sobre os compositores
clássicos e, tanto uma como outra, confundíamos facilmente o romantismo de
Brahms ou Dvorak com o modernismo de Prokofiev ou Debussy. Pouco interessa. A
nossa amizade formou-se e consolidou-se de pequenas coisas, acrescentando o
facto que lhe podia falar de mim e de Jean horas a fio, sem que ela
pestanejasse. Percebi-o numa tarde de Setembro, com prenúncio de fim de Verão.
Sentei-me preparada para a habitual enxurrada de palavras sem fio condutor, mas
enganei-me. Acomodada, quieta, reconciliada, Raquel olhava em silêncio,
respirava em silêncio e nesse não puxou conversa. A minha mãe dizia que somos
todos iguais na morte, e no silêncio, devo acrescentar. O silêncio é a solidão
do Diabo, o terreno fértil do maligno, defendia a minha mãe. Ela dizia que
devemos rezar, rezar muito, porque o Diabo teme o verbo. É, talvez, devido a
isso que amo as palavras. Um amor interesseiro que importa, todo o amor é
interesseiro. Foi a inesperada mudez de Raquel que me desatou a língua. Uma
crise de verborreia, fenómeno associado a certas doenças mentais, veio
destampar o túmulo onde habitavam todos os meus mortos. Sim, porque os mortos
vivem em nós e, mesmo contra nossa vontade, habitam-nos e resistem. Tive receio que Raquel me tomasse por uma
aberração de contradições. Ela não devia saber que a obsessão pela pureza me
corrompia e que a lógica do caos me exasperava até à demência. Seria isso a
loucura? Um estado permanente de negação do real e de si mesmo? Seria eu louca
como esses que ninguém vê? Louca como esses que ninguém viu até que a
insanidade lhes rebentou nas ventas, em forma de bomba artesanal, também dita cocktail
molotov que fazem depois a abertura dos telejornais e as capas da imprensa.
Como pode um louco passar despercebido a esse ponto?
Jean soube vê-lo, desde logo, na primeira correspondência
que trocáramos. Face a esta Raquel muda e retirada, foi como se toda a loucura
me viesse em vómito despejar-se à nossa mesa. O momento prestou-se a
descarregar todas as velharias inúteis e outras que nunca conseguira contar a
ninguém, nem ao meu psiquiatra. Nem ele saberia analisar essas teias de aranha,
escondidas como segredos inconfessáveis, que eu julgava expulsas da memória
graças à bulimia das imagens. Pura ilusão. A memória é eterna, tal como rezam
os epitáfios à cabeceira das campas, nos cemitérios. Para tudo vos dizer, nunca
fui de pequenas ou grandes confidências. Habituei-me a pagar sempre que necessitava
de confiar-me a alguém. Ao meu psiquiatra dava sessenta euros por uma hora de
consulta e nem sequer recebia conselhos.
Fazia sentar-me frente à secretária de mogno preta, e
mandava que falasse sobre tudo o que me aborrecia, sobre o que era suposto
perturbar-me. Depois ouvia, ou fingia que ouvia, sem dizer a mínima, e eu
pagava e saía. Um dia, cansada de falar sozinha, despedi-o. O Nicolas
Cornelius, que era consultado por muita da pequena burguesia parisiense
deprimida pelos Media torceu o nariz ao saber que não voltaria a receber os
meus sessenta euros. Era um belo homem e agradava-me passar uma hora a sós com
ele, todos os quinze dias. Houve momentos em que pensei, que tantas horas no
seu consultório, a sós, poderiam ter dado em caso. Mas não deu. Nunca gostei do
seu cheiro. Usava com frequência perfumes diferentes, sendo que parecia não
haver fragância que lhe ficasse bem. Troquei-o por Raquel. Ao menos Raquel não
me deixava a falar sozinha. Fiz dela a minha confidente, não porque a sabia incapaz
de quebrar o segredo de confissão mas, sobretudo, porque Raquel acertava sempre
nas palavras. O olhar terno, a voz mansa, o calor da sua mão a afagar levemente
o meu braço e as letras a saírem-lhe da boca para formar mensagens de
reconforto, os verbos no tempo certo, e eu a apaziguar-me por dentro como se
acostasse a uma ilha e me sentisse, enfim, segura, como uma filha ao lado de
uma mãe». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção
Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.
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