sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Plano Infinito Isabel Allende. «Afastou-se para a deixar passar, viu-a parar poucos metros mais adiante e pela portinhola assomou uma mulher de cabelo cor de tomate…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Iam pelos caminhos do Oeste sem pressa e sem rumo obrigatório, mudando a rota de acordo com o capricho de um instante, ao sinal premonitório de um bando de pássaros, à tentação de um nome desconhecido. Os Reeves interrompiam a sua errática peregrinação onde o cansaço os surpreendesse ou encontrassem alguém disposto a comprar a sua intocável mercadoria. Vendiam esperança. Percorreram assim o deserto numa e noutra direcção, cruzaram as montanhas e uma madrugada viram nascer o dia numa praia do Pacífico. Quarenta e tantos anos mais tarde, durante uma longa confissão em que passou revista à sua existência e fez as contas dos seus erros e acertos, Gregory Reeves descreveu-me a sua recordação mais antiga: um menino de quatro anos, ele próprio, urinando sobre uma colina ao entardecer, o horizonte tinto de vermelho e âmbar pelos últimos raios de sol, nas suas costas os picos dos cerros, mais abaixo, numa extensa planície, onde a sua vista se perde. O líquido quente escorre como algo essencial do seu corpo e do seu espirito, cada gota, ao fundir-se na terra, marca o território com o seu nome. Demora o prazer, joga com o esguicho, traçando um círculo cor de topázio sobre o pó, percebe a paz intacta da tarde, comove-o a imensidão do mundo com um sentimento de euforia, porque ele faz parte daquela paisagem límpida e cheia de maravilhas, uma incomensurável geografia para explorar. A pouca distância aguarda-o a sua família. Está tudo bem, pela primeira vez tem consciência da felicidade: é um momento que jamais esquecerá. Ao longo da sua vida Gregory Reeves sentiu em várias ocasiões esse deslumbramento perante as surpresas do mundo, essa sensação de pertencer a um lugar esplêndido onde tudo é possível e cada coisa, desde o mais sublime até ao mais horrendo, tem uma razão de ser, nada sucede por acaso, nada é inútil, como apregoava aos gritos seu pai, ardendo de fervor messiânico, com uma serpente enroscada nos pés. E cada vez que teve essa chispa de compreensão recordava aquele pôr-do-sol na colina. A sua meninice foi uma época demasiado longa de confusão e penumbras, excepto os anos a viajar com a família. O pai, Charles Reeves, guiava a pequena tribo com severidade e regras claras, todos juntos, cada um cumprindo com os seus deveres, prémio e castigo, causa e efeito, disciplina baseada numa escala de valores imutável. O pai vigiava como o olho de Deus. As viagens determinavam a sorte dos Reeves sem lhes alterar a estabilidade, porque as rotinas e as normas eram precisas. Foi esse o único período em que Gregory se sentiu seguro. A raiva começou mais tarde, quando desapareceu o pai e a realidade começou a deteriorar-se de maneira irreparável.
O soldado iniciou a marcha de manhã, de mochila às costas, e a meio da tarde já estava arrependido de não ter tomado o autocarro. Partiu a assobiar de contente, mas com o passar das horas doíam-lhe os rins e a canção enrolava-se-lhe com palavrões. Eram as suas primeiras férias depois de um ano de serviço no Pacífico e regressava à sua aldeia com uma cicatriz no ventre, restos de um ataque de malária e tão pobre como sempre tinha sido. Levava a camisa pendurada num ramo para improvisar sombra, suava e a sua pele tinha o brilho de um espelho escuro. Pensava aproveitar cada instante dessas duas semanas de liberdade, passar as noites a jogar bilhar com os amigos e a dançar com as miúdas que tinham respondido às suas cartas, dormir de perna aberta, despertar com o cheiro do café acabado de coar e as panquecas da mãe, único prato apetitoso da sua cozinha, o resto sabia a borracha queimada, mas a quem poderia importar a habilidade culinária da mulher mais formosa em cem milhas à volta, uma lenda viva com grandes ossos de escultura e olhos amarelos de leopardo? Há muito que não passava uma alma por aquelas solidões, quando sentiu atrás de si os estertores de um motor, viu ao longe a silhueta imprecisa de um camião tremelicando como uma forte miragem na reverberação da luz. Esperou que se aproximasse para pedir-lhe uma boleia, mas ao tê-lo mais perto mudou de ideias, assustado por aquela inusitada aparição, uma carripana pintada com cores insolentes, carregada até ao cimo como uma montanha de tralha, coroada por uma gaiola com frangos, um cão preso a uma corda e sobre o tejadilho um altifalante e um cartaz onde se lia em grandes letras O Plano Infinito. Afastou-se para a deixar passar, viu-a parar poucos metros mais adiante e pela portinhola assomou uma mulher de cabelo cor de tomate que lhe fez sinais para o levar. Não sabia se havia de alegrar-se, aproximou-se cauteloso, calculando que seria impossível entrar na cabina, onde viajavam apertados três adultos e duas crianças e seria preciso perícia de acrobata para trepar para a traseira. Abriu-se a porta e o condutor saltou para a estrada.

Charles Reeves - apresentou-se cortês, mas com inequívoca autoridade.
Vamos um pouco apertados como vê, mas onde cabem cinco cabem seis. O resto dos passageiros também desceu, a mulher de melenas vermelhas afastou-se em direcção a uns arbustos, seguida por uma rapariguinha de uns seis anos que para ganhar tempo ia baixando as cuecas, enquanto o menino mais pequeno deitava a língua de fora ao desconhecido, meio escondido por detrás da outra viajante. Charles Reeves desatou uma escada da retaguarda do camião, subiu sobre a carga com agilidade e soltou o cão, que de um saltou temerário largou a correr pelos arredores, farejando os matos». In Isabel Allende, O Plano Infinito, Edições Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-004-7.

Cortesia de EInapa/JDACT