quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Na parede seguinte um arcaz grande, tachonado, um banco corrido e por cima uma janela gótica, geminada, com vitral. No lado oposto, logo à esquerda de quem entra…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Depois de uma breve oração a pedir a Deus a bênção do alimento que íamos tomar, serviam-nos leite e pão que nós consumíamos com grande consolo dos nossos estômagos, mas sem sofreguidão: já havíamos sido muitas vezes admoestados pelos monitores de que o acto de comer deve ter a elevação espiritual bastante para lhe retirar quaisquer resquícios de animalidade, non vivit homo ut manducet, sed Manducat ut vivat. Sempre tenho pensado nesta sentença de Diógenes de Laércio, de que mais tarde, em Veneza, adquiri uma velha edição de 1490 das Vitae et Sententiae. Não me esqueço, até, de um dito do mestre monitor que naquele tempo nos tinha a seu cargo como se fôramos o seu rebanho. Frade muito jovem, de feições brancas e angulosas, queixo proeminente, cabelo ruivo, ondeado, sobre a testa um caracol pendente que constantemente anelava com o polegar e o indicador, e aqueles lábios muito bem recortados, como os de uma estátua grega, que se abriam e fechavam com uma precisão matemática ao pronunciarem, na sua voz encorpada e timbrada, numa dicção perfeita, todas as sílabas das palavras. Sempre nos devíamos levantar da mesa com um pouco de apetite: essa era a regra de ouro da higiene corporal e espiritual. O facto, porém, era que, não obstante estas ideias calarem em mim, não deixava eu de pensar, olhando bem em volta a realidade das coisas, que tudo se processava ao invés. O homem vivia na busca do imediato, do ter e do comer. Só uns quantos, muito poucos, conseguiam desprender-se das urgências da carne e superar, espiritualizar, sublimar os instintos. Nesse aspecto, embora me soubesse muito bem a refeição que tomava, aquele leite denso e suculento, aquele pão perfumado, não me custava nada aceitar a orientação dos meus superiores franciscanos, que tinham como norma a pobreza e o evangélico angariar do estrito pão de cada dia. Acabada a refeição e recitada a oração de acção de graças, dirigíamo-nos para o grande salão de estudo onde nos preparávamos para as aulas, que não tardavam a começar, mal a sineta tocava. Toda a escola, contígua ao convento, era então uma grande colmeia de trabalho. Não havia ninguém desocupado, desde as crianças que nós éramos, uma espécie de viveiro ou seminário, passando pelos mais adiantados, os postulantes, os noviços. Os mestres eram recrutados no convento entre os frades de mais sabedoria e experiência, que lecionavam as disciplinas mais avançadas e especializadas.
As aulas de iniciação eram ministradas pelos irmãos que haviam professado recentemente e revelado propensão para o magistério. Sempre me infundiu um profundo respeito ver os mestres passarem, com seus livros nas mãos ou debaixo do braço, o andar calmo e o semblante sem paixões de quem atingiu a serenidade da sapiência. Ouvi-los falar era para mim motivo de enlevo e os seus ensinamentos penetravam-me no espírito sedento sem admitirem réplica: o que eles diziam era a verdade. Então, eu não sabia ainda o que era a opinião, desconhecia que um mesmo assunto podia ser encarado por ângulos diferentes e nem sempre as ideias das pessoas coincidiam. Quando mais tarde assisti maravilhado a algumas sessões do Concílio de Trento, aprendi que homens tidos como sábios e doutos, os mais doutos e sábios que a Cristandade elegera e enviara àquela cidade italiana, podiam discutir e debater uma questão por prismas diversos e não raro antagónicos. Era este um terreno resvaladiço, diziam-me, que só a muita santidade e isenção desses doutores e a sua inteligência iluminada pelo divino Espírito Santo podiam arrostar, estava eu a entender? A incerteza e pusilanimidade eram armas do anjo das trevas. Assaltavam os menos escudados e ai de quem vacilasse e deixasse entrar no seu coração a semente da dúvida. A escola no entanto, sobretudo nos anos de iniciação, tinha o sacrossanto encargo de formar os espíritos e as almas, lançando os alicerces e as traves-mestra da verdade que havia de levar à santificação, último escopo de toda a ciência humana. Tinha pois de ser normativa e dogmática.
Eu ficava parado a ver passar os mestres e a cismar em que também um dia gostaria de ser sabedor como eles. Isso levava-me a dedicar-me afincadamente ao estudo. É por essa altura que as pessoas que me rodeiam surgem na minha memória com nome próprio, bem identificadas. Recordo-me e estou a ver como se fosse hoje... Porque me ficou essa cena tão gravada na lembrança que ainda agora há qualquer coisa, muito vaga, nas profundezas de mim, que me dói?... Era numa sacristia. Ao longo da parede, engastado nela e em cima de um estrado baixo, corria aquele imenso, comprido e alto móvel, de bela nogueira lustrosa de um castanho rosado e quente, com os seus enormes gavetões onde se guardavam as alfaias do culto e os paramentos, que cheiravam a alecrim e a espicanardo. Na parede seguinte um arcaz grande, tachonado, um banco corrido e por cima uma janela gótica, geminada, com vitral. No lado oposto, logo à esquerda de quem entra, a pia da água benta, concha espalmada de mármore branco, com nervuras e relevos lavrados por fino cinzel, a que a maior parte de nós ainda não chegava senão em bicos dos pés. E nós éramos aqueles pequenos seres que no meio da ampla quadra, sentados em círculo nuns escabelos de madeira, muito rasos, rodeávamos aquele jovem fradelo vestido de grosseiro burel castanho, cingido de corda, que lhe fazia cair em pregas miúdas a sotaina». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT