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Quando a tia Alice retornou à sala, para avisar que o jantar seria servido na sala
das refeições, notei um certo embaraço tanto nela como em Augusto. Nenhum deles
me convidou a participar da refeição, o que era um contra-senso, tratando-ser de
pessoas do Nordeste, acostumada a compartilhar as suas refeições com os
visitantes. O assunto que me levara ali custou a aparecer. Eu queria saber
quando Augusto iria publicar o seu livro. Tinha prometido a mim mesmo que se
algum dia Augusto publicasse os seus poemas eu queimaria os meus. Naquela tarde
ele fez diversos comentários sobre as suas dificuldades para publicar. Estava
desiludido com o Rio de Janeiro, que pensara ser uma cidade cosmopolita, mas
que até então lhe parecia uma aldeia, embora houvesse muitos franceses e
ingleses, repleta de injustiças sociais, um espectáculo de miseráveis ao lado
de caleças e automóveis que tornavam as ruas tristes corredores. O Rio de
Janeiro é uma espécie de sereia falaciosa, pródiga unicamente em sonoridades
traidoras para os que vêm pela primeira vez. Disse que o Rio era uma cidade que
premiava as falcatruas. Os honestos, os sonhadores, eram considerados bestas
idiotas. Dentre os poetas, grassava o convencionalismo imbecil de Aníbal
Tavares, Teófilo Pacheco, a camarilha inteligente, competindo em bovarismo com
os letrados de Buenos Aires e Paris. Os intelectuais só se preocupavam com
futilidades, como a estátua a Eça de Queirós. Gente como Coelho Neto, João Rio,
grandes homens da literatura, enchiam páginas e páginas das folhas com o assunto
tão palpitante.
Estava ocorrendo a grita dos intelectuais para que
se fizesse uma estátua do escritor português, o que Augusto criticou, dizendo
ser uma tolice. Eu disse, citando Bilac, que viver no bronze era melhor do que
não viver nem no bronze nem na carne, que não viver nem no bronze nem na carne
era como não viver nem no céu nem no inferno, e nem viver em lugar nenhum. No
Passeio Público, passeei aqui num entardecer com Augusto, logo que cheguei à
capital, quando parei a nossa caminhada para admirar a estátua de Gonçalves
Dias, ele prosseguiu o seu caminho dizendo as formas só têm valor se um
espírito as anima. De madrugada, por vezes, quando espero o tílburi para
Botafogo, fico admirando a estátua de José Alencar muito triste na sua cadeira
de bronze; sinto vontade de acariciar as suas mãos. No Teatro São Pedro, mais
do que ouvir a Bohème aprecio a estátua modelada em gesso por Almeida Reis;
trata-se da imagem de António José, no sombrio vão de uma janela fechada, uma
estátua suja, quebrada, faltando três dedos na mão, a ponta do nariz, a aba do
gibão e um dos pés, coberta de pó; braços estendidos, peito estufado, olha para
o alto como se declamasse um poema naquele lugar imundo ao lado de um piano
preto entre garçons em mangas de camisa e o público do espectáculo, que
solenemente a ignoram. Tem uma dignidade, uma altivez, um ar poético, uma
espiritualidade que encantam.
As dificuldades de Augusto davam-me uma imensa
angústia. Mas quando me deparei com a realidade de sua miséria fui tomado de
uma verdadeira ternura e tive vontade de chorar. Ofereci-lhe como empréstimo
uma boa quantia mas ele, como sempre orgulhoso, recusou quase ofendido. No
momento em que me despedia dele, vi de relance a mesa da sala posta com apenas uma
terrina de sopa e uma bandeja com fatias finas de pão. Isso devia ser
humilhante para quem crescera num engenho de cana-de-açúcar. Talvez não fosse
tão doloroso suportar o frio do Rio de Janeiro, a falta de espaço, a sujeira, a
má vizinhança, o barulho. Mas a refeição de uma sopa rala devia ser para
Augusto o maior de todos os insultos. No Engenho do Pau d'Arco servia-se a mesa
mais farta em toda a Várzea do Paraíba. As comidas preparadas por Donata e
Librada eram deliciosas, só de pensar nelas sinto minha boca se inundar de
saliva, meu nariz captura no ar a lembrança dos odores vindos da cozinha.
Aos domingos comíamos sarapatel de porco, servido
com farinha seca e pimenta malagueta, algumas gotas de limão sobre a carne.
Bebíamos vinho verde português, comprado em pipa na mercearia de António Maia,
na cidade da Paraíba. Mesmo criança eu já gostava de bebidas espirituosas. Até
hoje perambulo pelos restaurantes do Rio de Janeiro em busca de um sarapatel
parecido com aquele, mas em vão. Persigo pelas ruas a mágica impressão do odor,
espalhado pela brisa, de carne fresca da chã-de-dentro, mocotó ou chambaril; ao
fechar os olhos, na cama, vejo o pirão dourado; minha boca se enche de saliva
quando penso no maxixe, quiabo ou jerimum-de-leite; passo a mão na seda de uma
camisa e sinto a suavidade dos molhos de couve que cresciam no quintal da casa;
verto lágrimas com saudades da bacalhoada das sextas-feiras; sinto meu estômago
revirando-se, com desejo de um bredo cozinhado no azeite, feijão e peixe de
coco, servidos na Quaresma. E não há nenhum Natal em casa luxuosa no Rio de
Janeiro que ofereça algo tão delicioso como os pastéis de nata da Librada, ou
os filhoses de palito embebidos em mel claro, feitos por Donata. As sobremesas
do engenho também me deixaram impressão profunda. As frutas eram mais saborosas
do que todas as que provei no Rio de Janeiro, mesmo as maçãs ou peras importadas
não se igualam às bananas e laranjas que Donata preparava, em talhadas,
misturadas com farinha, ou aos abacaxis, às perfumadas mangas, aos abacates». In Ana
Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.
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