«(…) Agarraram o seu braço,
passaram cuidadosamente o chumaço com éter sobre a pele, como fazem os farmacêuticos,
e enfiaram a agulha. O líquido injectado não produziu nenhum efeito, mas Willy
achou mais prudente fingir que estava dopado. O carro rodou por duas horas,
mais ou menos, com os quatro em silêncio. Pelas gretas do capuz dava para ver que
os três gesticulavam muito, como quem não conhece direito o caminho. Andaram no
meio do trânsito e depois apanharam algo que parecia ser uma estrada asfaltada.
Como Willy se mexesse muito, tentando arrumar uma posição menos incómoda para o
corpo, eles pararam o carro no meio do trajecto e um dos homens que ia atrás
passou para o banco da frente, permitindo que ele esticasse um pouco mais as
pernas. Voltaram a rodar em silêncio até que o carro parou e alguém perguntou
em voz baixa: quem vai abrir o portão? O carro entra num lugar fechado e Willy é
conduzido ao interior de um espaço de luzes apagadas. Alguém ergue uma lona e,
amparando-o como a um cego, força-o a se agachar, quase a se arrastar, para
entrar por uma portinhola metálica de pouco mais de meio metro de altura. Pelos
ruídos em volta Willy nota que os três que o haviam agarrado na porta da
academia ficam noutro espaço e que agora está sob a guarda de outros dois. De cócoras,
passa as pontas dos dedos no piso e percebe que é uma superfície de madeira áspera.
Um homem aproxima-se através das
grades, então aquilo não era um caixote, mas uma cela, e retira as algemas dos
seus braços. Em seguida, ouve uma voz com leve sotaque nordestino: pode tirar o
capuz. Dois lençóis e um colchãozinho de solteiro, ralo, vagabundo, são
atirados a seus pés. Willy levanta-se e tenta explorar, pelo tacto, o lugar
onde se encontra. Em minutos descobre que não é uma cela: está preso numa jaula
de circo, feita de grossos canos de ferro, medindo dois metros por um e com
1,80 metro de altura, aparentemente, feita sob medida para o seu tamanho. O único
acesso a ela é a portinhola por onde entrou, trancada do lado de fora por dois
cadeados enormes. Habituando-se à escuridão, os seus olhos conseguem
identificar o resto: a jaula está encostada no canto de um espaço e cercada por
um encerado desses usados em caminhões, com as pontas amarradas ao tecto por
meio de cordas. A cortina de lona cerca a jaula por todos os lados, menos o de
cima. Pelas grades do tecto Willy percebe que é uma construção pobre, de
telhado à vista, sem revestimento. No vão entre a parede e as telhas, distingue
um fio elétrico que termina numa lâmpada. Só então começa a desconfiar que não
vai acontecer o jantar que ele e Cláudia, a sua mulher, tinham combinado com um
casal de amigos para aquela sexta-feira à noite.
A suspeita se transforma em
certeza quando uma voz anuncia: isto é um sequestro. Precisamos de um nome para
servir de interlocutor e intermediário. Alguém da sua confiança. O primeiro
nome que lhe vem à cabeça é o de Édson Carvalho Oliveira, seu amigo e vice-presidente
financeiro da Bahema. Do outro lado do encerado o homem pergunta: quer escrever
um bilhete para ele? Quero. Um para ele e outro para Cláudia, minha mulher. Passaram
folhas de papel e uma caneta pelas grades e a lâmpada pendurada no tecto foi acesa.
O primeiro bilhete foi para Cláudia:
Cláudia, meu amor. Estou bem, na
medida em que é possível estar bem numa cela de dois metros por um. As pessoas
que estão tomando conta de mim estão sendo gentis, e até, de certa maneira, amáveis.
Só na hora em que fui sequestrado é que houve alguma violência. Pode imaginar a
vontade de estar aí com as crianças e você. É tudo que tenho pedido a Deus. Os
homens me pediram um homem de confiança para servir de negociador. Dei o nome
do Édson, mas não sei se dei o telefone correcto. Em seguida dei o nosso
telefone, para não pensar que eu tinha dado uma esticadinha depois da ginástica.
Imagino a barra que está passando. Logo estaremos juntos de novo. Espero que
isto dure pouco e que permitam que eu lhe escreva. Embora esta não seja a hora
mais apropriada para declarações, jamais tive tanta certeza de quanto eu a amo.
Beijos para dona Gabriela, dona Cristiana e Guigão. Diz para ele que o pai está
no Japão e volta logo. Willy. PS: Não esqueça de mandar beijos para o pai e a mãe.
O
bilhete para Édson foi escrito na mesma linguagem informal e bem-humorada e,
como no de Cláudia, Willy tentava transmitir a impressão de que os sequestradores
eram pessoas de boa índole, que o tratavam bem». In Fernando Morais, Cem quilos de
ouro, Companhia das Letras, 2003, ISBN 978-853-590-449-9.
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