sábado, 4 de agosto de 2018

O Primeiro Herói. José C. Oliveira. «E rogam, num silêncio feito de constrangimento, que aqueles momentos se prolonguem sem termo, para que naquela chama crescente Afonso Henriques possa almejar longamente…»

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Afonso Henriques
Nascimento de uma nação...
«(…) O grupo abranda e acaba por parar, arreiam o estrado, procuram ver o que lhe atrai a atenção. O olhar de Afonso concentra-se na escuridão à frente, para lá dos archotes dos homens de armas. Chama-os: eh! Vós! Passai para trás de mim. Os homens de armas recuam com os archotes, passam à rectaguarda do grupo, deixando alastrar a escuridão à frente no corredor. Ao fundo desenha-se uma pequena luz, que se aproxima. Afonso Henriques esforça-se por se erguer, o peso do corpo suportado pelas mãos sobre os braços do trono.
Os homens em volta acorrem a ajudá-lo, logo parados por um gesto. Vêem-lhe a atenção fixa na pequena luz e ouvem a ordem seca: afastai-vos. Todos! Todos se imobilizam, atraídos também pela pequena chama, nem sequer vêem Afonso Henriques puxar uma das pernas à posição ideal, para depois se elevar, sem um queixume, na sua grande estatura. Chama os homens com os archotes atrás de si. Vós dois entregai os archotes e vinde aqui rápido. Só então se apercebem dele em pé, escorreito como se em duas pernas sãs se sustivesse. Acorrem os dois homens a dar-lhe os ombros, que ele toma com destreza, avançando dois passos, e imobilizando-se, crescendo no porte enquanto se lhe anima a expressão fixa na pequena chama.
Os nobres aproximam-se, olham o mesmo que ele, menos esperançosos do que inquietados pela antecipação de uma nova desilusão do seu Rei, após tantos anos de justiça incumprida por Roma. E rogam, num silêncio feito de constrangimento, que aqueles momentos se prolonguem sem termo, para que naquela chama crescente Afonso Henriques possa almejar longamente o que aquele como os anteriores papas teimaram e teimam em recusar-lhe, ao Rei de Portugal, e a todos os deste Reino.

É o final de um dia em que a chuva caiu sem interrupção. O chão do terreiro frontal ao castelo de Guimarães está repleto de largas poças de água e no alto as nuvens espessas deixam cair uma luz mortiça que adensa a pedra das muralhas inexpugnáveis do castelo. No topo das enormes torres quadrangulares de protecção às portas, os homens de armas observam inquietos o terreiro, enquanto acendem archotes, preparando-se para a vigília nocturna. Subitamente, um deles berra que Lá vem, lá vem! Os outros acorrem às ameias, o homem aponta a estrada na boca do terreiro, é um cavaleiro que se aproxima a galope. Após uma primeira hesitação reconhecem-no, levantam os archotes no ar, gritam com entusiasmo. Senhor Henrique, Senhor Henrique! Henrique parece redobrar o galope, acena-lhes entusiasmado. Pelo que lhe disseram e vê agora nas muralhas, já nasceu. E seja o que espera e precisa ou não, é um novo pedaço do seu sangue. Mas que Deus lhe dê o que precisa, porque é o que ele só quer e o que o Condado tem de ter, agora. Tão certa e crua esta urgência como a água gelada que o envolve na explosão dos charcos batidos-pelo galope desenfreado. Mal pára a montada e já salta para o chão às portas do castelo, correm os homens da guarda a segurar-lhe o cavalo, ele galga a escadaria e desaparece pela grande porta». In José Carlos Oliveira, D. Afonso Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-419-0.

Cortesia de OdoLivro/JDACT