Roma.
1605
«(…)
O papa ofereceu a mão com um suspiro, e o outro beijou o anel. O cardeal fez
uma mesura, voltou-se e encaminhou-se depressa à porta secreta. Só uma vez
olhou por uma fenda nas pedras, frias e cinzentas, passando a mão, para ter
certeza de que não havia ninguém no corredor do lado de fora. Como não viu coisa
alguma, empurrou a porta e deixou atrás o seu papa. Uma vez no corredor,
percebeu que as suas mãos não paravam de tremer e que o suor não parava de
escorrer-lhe da linha dos cabelos. Esforçou-se para sufocar o pior temor: que o
papa houvesse enlouquecido. Reduziu o passo apenas um pouco, tentando decidir o
que o perturbava mais: a conversa que acabara de ter com Sua Santidade ou a que
teria com o mais frio homem da Itália.
Cambridge, Inglaterra
Sem aviso, o diácono Francis
Marbury teve o sono despedaçado. Socorro! Assassinato! Alguém! Abriu os olhos.
O luar, suave e claro, banhava o quarto. A noite de Abril era fria, o ar ainda retinha
uma forte lembrança do Inverno, embora essa estação já tivesse ido embora. Alguém!
Socorro! Marbury voou de debaixo das cobertas, envolveu-se numa capa acolchoada
preta e enfiou a cabeça pela janela do minúsculo quarto. Uma a uma, todas as
outras em volta passaram de negras a brancas; vozes puseram-se a gritar. Ele
cambaleou de volta, parou para calçar as botas e mergulhou no corredor do
diaconato, aumentando o passo enquanto voava escada abaixo. Na noite do lado de
fora, vários outros juntaram-se a ele; rostos borrados na escuridão. A paz do
pátio comum, cercada por silenciosos prédios de pedra, fora destruída por
homens que corriam em direcção aos gritos. Quando se aproximou do Grande Salão,
de cujo lado vieram os gritos, Marbury viu que um dos académicos, Edward
Lively, barrava a porta. Vestia fino brocado, um suave tom de prata que reflectia
a luz do luar na direcção dele. Usava um chapéu de arminho, novo e ousado, e
luvas de couro negro com abotoaduras que exibiam a letra L. Tinha a barba tão limpa e macia quanto a cama de um rico.
Outros cercaram a entrada quando o pastor parou diante dele.
Que foi que houve?, perguntou,
sem fôlego, e tocou o ombro do outro. Um cadáver, conseguiu responder Lively,
engolindo em seco. Afastou-se e abriu a porta do salão, com uma voz que ecoou
nas paredes sem vida. O restante dos homens passou por ele aos montes, velas
acesas; faziam furiosas perguntas. O salão, era uma caverna, fria e silenciosa.
Uma obsidiana mais negra que a noite obscurecia os cantos mais distantes. O ar
parecia tomado por lascas de gelo, que picavam os dedos e açoitavam as faces. Os
homens avançaram devagar. Alguma coisa terrível jazia numa pilha logo em frente.
Após um instante, um dos homens gritou. Outro começou a tossir, ou a vomitar. Marbury
respirava forte. Deus do céu! Um corpo ensanguentado estendia-se no frio piso
de pedra perto da escrivaninha de um dos académicos.
O
pastor lutou para controlar a respiração, repetindo na mente sem parar que o
que via na verdade não estava ali; era um fantasma. Mas a mente sabia que não. Ao
que parecia, Lively deixara cair a vela, que fora parar próximo à perna de uma escrivaninha
e continuava a arder, de lado, e a lançar uma luz trémula sobre o morto
desabado em baixo da mesa. Um cadáver, apenas, não teria aterrorizado tanto os
estudiosos. Por causa da peste, cada um vira no seu tempo muitos corpos sem
vida. Era o rosto do cadáver que provocava o impulso de gritar; a visão
revirava o estômago. Fora cortado talvez uma centena de vezes: lacerações
longas esburacavam a carne até não restar traço algum; apenas músculos nus,
pontas de ossos e sangue seco da cor de ameixas podres. Com aquela face
desfigurada, não havia como saber a identidade do homem. Vejam! Gritou Robert
Spaulding, espantado» In Phillip Depoy, A Conspiração do rei
James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.
CortesiaPrumo/JDACT