sexta-feira, 31 de julho de 2015

Os Passos Perdidos no 31. Alejo Carpentier. «A selva era o mundo da mentira, da armadilha e do falso semblante: ali tudo era disfarce, estratagema, jogo de aparências, metamorfoses. Mundo do lagarto-cogombro, de castanha-ouriço, da crisálida-centopeia e do peixe eléctrico que fulminava desde a quietude das linhaças». Para sempre cdu…

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«Há quatro anos e sete meses que eu não via a casa de colunas brancas, com o seu frontão ornado de carrancudas molduras, que lhe dava um ar austero de palácio de justiça, e agora, perante móveis e velhos trastes colocados nos mesmos lugares tinha a quase penosa sensação de que o tempo regredira. A mesma cortina cor de vinho, a mesma gaiola vazia, a mesma roseira a trepar pela parede. Mais além, estavam os ulmeiros que eu ajudara a plantar nos dias de grande euforia, quando todos nós colaborávamos na obra comum; junto ao tronco envelhecido, o banco de pedra que fiz ressoar como madeira, com o bater dos meus tacões. Por detrás, o caminho para o rio, com as suas magnólias anãs, e o gradeamento de intrincados arabescos à maneira de Nova Orleães. Como na primeira noite, andei pelo átrio, ouvindo a mesma ressonância oca sob os meus passos e atravessei o jardim para chegar mais rapidamente ao local onde se moviam, em grupos, os escravos marcados a ferro, as amazonas de saias enroladas no braço e os soldados feridos, esfarrapados, com ligaduras mal atadas, aguardando a sua hora no meio de sombras tenebrosas, fedendo a betume, a feltros velhos, a suores acumulados nas mesmas labitas. Saí a tempo da zona iluminada, quando o disparo do caçador se fez ouvir e um pássaro tombou no palco do segundo terço de bambolinas. A crinolina de minha mulher voou por cima da minha cabeça, pois encontrava-me precisamente no sítio por onde ela entrava em cena, estorvando-lhe a passagem já de si estreita. Por ser menos penoso, dirigi-me ao seu camarim, e aí tomei consciência do tempo: tudo demonstrava claramente que quatro anos e sete meses não se passavam sem desgastar, desluzir e murchar. As rendas dos remates estavam ruças; o cetim negro da cena do baile perdera a bela rigidez que o fizera ranger em cada reverência, como um revolutear de folhas secas. Até as paredes do aposento se tinham deteriorado, por serem sempre tocadas nos mesmos sítios, mostrando assim as marcas da sua longa convivência com os cosméticos, as flores retardadas e os trajes da fantasia. Sentado agora no divã, que de verde-mar passara a verde-cinza, consternara-me pensar quão dura se tornara, para Ruth, essa prisão de tábuas e artifícios, com suas pontes volantes, suas teias de cordel, suas árvores pintadas. Na altura da estreia dessa tragédia da Guerra da Secessão, quando nos tocou a nós ajudar o jovem autor, servido por uma companhia recém-saída de um teatro experimental, entrevíamos no máximo uma aventura de vinte noites. No entanto, atingimos as mil e quinhentas representações, sem que as personagens, ligadas por contratos sempre prorrogáveis, tivessem alguma possibilidade de se evadir da acção depois que os empresários, utilizando o generoso ardor da juventude em proveito dos seus grandes negócios, receberam a obra na sua sociedade. Assim, para Ruth, longe de ser uma porta aberta sobre o vasto mundo do Drama, uma forma de evasão, este teatro era a Ilha do Diabo. Suas breves fugas, quando se permitia tomar parte em espectáculos de beneficência, sob o penteado de Pórcia ou a túnica de alguma Ifigénia, não lhe traziam grande alívio, pois por debaixo de um vestido diferente os espectadores procuravam a rotineira crinolina, e na voz que pretendia ser a de Antígona, todos encontravam as inflexões de contralto da Arabela, que agora no palco aprendia com Booth, numa situação que os críticos tinham por prodigiosamente inteligente, a pronunciar correctamente o latim, repetindo a frase: Sic semper lyrannis. Seria necessário, no entanto, ter o génio de uma trágica ímpar para se libertar desse parasita que se alimentava do seu sangue; daquela hóspede de seu próprio corpo, incrustada em sua carne como um mal sem remédio. A vontade de romper com o contrato não lhe faltava. Porém, essas revoltas pagavam-se, no ofício, com um longo desemprego, e Ruth, que começara a dizer o texto com a idade de trinta anos, via-se chegada aos trinta e cinco, repetindo os mesmos gestos, as mesmas palavras, todas as noites da semana, todas as tardes de domingo, sábados e dias feriados, sem contar com os espectáculos das digressões estivais. O sucesso da obra aniquilava lentamente os seus intérpretes, que iam envelhecendo à custa do público de dentro de suas roupas imutáveis, e quando um deles morrera de enfarte, certa noite, pouco depois de cair o pano, a companhia, reunida no cemitério na manhã seguinte, exibira, talvez, sem se dar conta, uma aparatosa roupa de luto que mais fazia lembrar um daguerreótipo. Cada vez mais desgostosa, menos esperançada em atingir uma carreira que, apesar de tudo, amava por profundo instinto, a minha mulher deixava-se arrastar pelo automatismo do trabalho imposto, como eu me deixava arrastar pelo automatismo da minha profissão». In Alejo Carpentier, Os Passos Perdidos, 2008, tradução de António Santos, Saída de Emergência, 2010,m ISBN 978-989-637-244-6.

Cortesia de SEmergência/JDACT

Zoltan Kodály no 31. Música. Poesia. «Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade. A sensibilidade é pessoal e intransmissível. É todavia susceptível de generalidade, compreensível já pela inteligência, pela sensibilidade dos outros»

Chichorro 
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Memória
«Retenho com os meus
dentes
a tua boca entreaberta
e as palmas das mãos
dormentes
resvalam brandas e certas.
As tuas mãos no meu peito
e ao longo
das minhas pernas».



Noite
«De noite só quero vestido
e tecido dos teus dedos
e sobre os ombros a franja
do final dos cabelos.

Sobre os seios quero a marca
do sinal dos teus dentes
e a vergasta dos teus lábios
a doer-me sobre o ventre.

Nas pernas e no pescoço
quero a pressão mais ardente
e da saliva o chicote
da tua língua dormente».
Poemas de Maria Tereza Horta, in ‘As Palavras do Corpo

In Maria Tereza Horta, As Palavras do Corpo, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-204-903-0.

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O Cuco no 31. Quando o Cuco Chama. Robert Galbraith. «Porque nasceste quando a neve tombava? Devias ter vindo quando o cuco chamava. Ou quando as uvas estão verdes nas vinhas ou pelo menos quando as lestas andorinhas voam para escapar ao verão a acabar»

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«Porque nasceste quando a neve tombava?
Devias ter vindo quando o cuco chamava.
Ou quando as uvas estão verdes nas vinhas
ou pelo menos quando as lestas andorinhas
voam para escapar
ao verão a acabar».
[…]
In Christina Rossetti, A Dirge

«(…) As barreiras de metal e os tapumes de plástico azul que rodeavam as obras na estrada tornavam muito mais difícil ver para onde devia dirigir-se, porque ocultavam metade dos pontos de referência desenhados no papel que tinha na mão. Atravessou a rua esventrada em frente a um prédio alto de escritórios, identificado como Centre Point no seu mapa, e que parecia um waffle gigantesco de cimento, com a sua grelha densa de janelas quadradas uniformes, e encaminhou-se mais ou menos na direcção de Denmark Street. Encontrou-a quase acidentalmente, seguindo por um beco estreito chamado Denmark Place e saindo para uma rua curta cheia de fachadas de lojas coloridas: montras pejadas de guitarras, de teclados e de todo o tipo de produtos musicais efémeros. Umas barreiras vermelhas e brancas rodeavam outro buraco aberto na estrada, e os trabalhadores com coletes fluorescentes saudaram Robin com assobios logo de manhã, que ela fez de conta que não ouviu. Consultou o seu relógio. Como tinha dado a margem de tempo usual para o caso de se perder, tinha chegado um quarto de hora adiantada. A porta do escritório que ela procurava, pintada de preto e sem quaisquer características especiais, ficava à esquerda do 12 Bar Café; o nome do ocupante do escritório estava escrito numa tira de papel pautado colado com fita-cola ao lado da campainha do segundo andar. Num dia normal, sem o anel novinho em folha a brilhar-lhe no dedo, talvez ela tivesse achado aquele pormenor desanimador; hoje, no entanto, o papel sujo e a tinta da porta a descascar eram, tal como os vagabundos da noite anterior, meros pormenores pitorescos no pano de fundo do seu fantástico romance. Olhou de novo para o relógio (a safira cintilou e o seu coração deu um salto; veria aquela pedra a brilhar para a resto da sua vida) e depois, num acesso de euforia, decidiu subir antes da hora e apresentar-se entusiasmada a um trabalho que não tinha a mínima importância.
Estava a estender a mão para a campainha quando a porta preta se abriu de rompante e saiu uma mulher de roldão para a rua. Num estranho segundo estático, as duas olharam-se nos olhos, ambas a prepararem-se para aguentar uma colisão. Os sentidos de Robin estavam especialmente alerta nesta manhã encantada; a visão daquele rosto por uma fracção de segundo causou-lhe uma tal impressão que, pensou ela, momentos depois de conseguirem evitar-se uma à outra por uma unha negra e de a mulher de cabelo escuro se apressar a descer a rua) virar a esquina e desaparecer da vista, poderia desenhá-la perfeitamente de memória. Não foi só a extraordinária beleza do seu rosto que se lhe gravou na memória, mas também a sua expressão: lívida, mas estranhamente agitada. Robin segurou na porta antes de ela se fechar sobre as escadas acanhadas. Uma escadaria antiquada de metal subia em espiral à volta de um elevador de gaiola igualmente antiquado. Concentrando-se em evitar que os seus tacões altos ficassem presos nos degraus de metal, subiu até ao primeiro patamar, passando por uma porta onde estava pendurado um cartaz laminado e emoldurado a dizer Crawdy Graphics, e continuou a subir. Foi só quando chegou junto à porta envidraçada no andar acima que Robin se apercebeu, pela primeira vez, do tipo de negócio para onde a tinham enviado como secretária. Ninguém na agência lhe tinha dito. O nome no papel ao lado da campainha lá em baixo estava gravado no painel de vidro: C. B. Strike, e por baixo as palavras Detective Privado». In Robert Galbraith, Quando o Cuco Chama, tradução de Ana Saldanha, Maria Segurado e Rita Figueiredo, Editorial Presença, 2013, ISBN 978-972-235-153-9.

Cortesia da EPresença/JDACT

Realeza no 31. Uma Rainha Inesperada. Isabel Pina Baleiras. «Em 1458, por ordem do rei Afonso V, o cronista e guarda-mor da Torre do Tombo, Gomes Eanes Zurara, iniciou um processo de depuração e remodelação […] os dezassete livros de Fernando I resumiram-se a dois, os quarenta e oito de João I passaram a quatro…»

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Fernão Lopes, a verdade e a história
«(…) A leitura das crónicas, como de toda a outra documentação, deve ser feita com alguma reserva. No caso das crónicas lopesianas, náo deveremos deixar de ter em conta que foram escritas entre 1437 e 1443, ou seja, sensivelmente sessenta a setenta anos depois do reinado fernandino (1367-1383) e da regência de dona Leonor (22 de Outubro de 1383 a Janeiro de 1384). Esta distância temporal, embora não seja muito acentuada, difere da do tempo em que o cronista castelhano Pero López Ayala (1332-1407) viveu. É preciso que saibamos, também, que Ayala foi não só cronista, como curador do casamento entre o infante Henrique e a infanta portuguesa dona Beatriz; chanceler e alferes-mor do rei João I de Castela (marido da dita dona Beatriz); vassalo presente nos juramentos ao Tratado de Salvaterra de Magos e participante na batalha de Aljubarrota, do lado castelhano. Ou seja, ao contrário de Lopes, foi testemunha ocular de acontecimentos passados na época a que nos reportamos, acontecimentos esses muitas vezes relatados nas suas crónicas. Por fim, é importante ter em conta que a obra de Fernão Lopes resultou de uma encomenda feita pela dinastia de Avis, nos primeiros anos da sua vigência, quando urgia afirmar o reinado dos novos governantes.
A juntar a estes factores, existe a informação de que a maioria dos documentos que fizeram parte dos livos da chancelaria de Fernando I (que contém também os diplomas de dona Leonor Teles) não chegou até nós. Vejamos porquê. A Torre do Tombo, criada por Fernando I, em 1378, e instalada no castelo de São Jorge, passou a ser o arquivo onde se guardavam os livros das chancelarias régias. Com o passar dos anos, a desorganização foi-se instalando: o grande número de livros de registos, o desconhecimento da língua latina e do português arcaico, a ilegibilidade das grafias antigas, o estado de conservação, a proficuidade de traslados e cópias de um mesmo acto, a caducidade das cartas tornavam inútil uma parte dos diplomas guardados e dos registos feitos e, ao mesmo tempo, dificultavam o exame e a consulta dos mesmos.
Urgia reformular a Torre. Em 1458, por ordem do rei Afonso V, o cronista e guarda-mor da Torre do Tombo, Gomes Eanes Zurara, iniciou um processo de depuração e remodelação que marcou para sempre a História e que consistiu no seguinte: escolher nos livros de registo antigos os actos dignos de memória e copiá-los para novos livros de registo. Assim, os dez livros de Pedro I foram reduzidos a um, os dezassete livros de Fernando I resumiram-se a dois (Livros 1 e 2, da sua chancelaria), os quarenta e oito de  João I passaram a quatro e os cinco de Duarte I a um. Os antigos livros de registo passaram à categoria de obsoletos e foram esquecidos, até acabarem por desaparecer no reinado de João III; se no inventário de 1526, feito por Tomé Lopes, guarda-mor da Torre, ainda constavam cerca de setenta desses livros antigos, entre os quais os dezassete de Fernando I, no inventário de 1529, elaborado pelo guarda-mor seguinte, Fernão Pina, a respeito do conteúdo deixado pelo seu antecessor, os mesmos já não foram citados. Assim sendo, só depois de João I e, sobretudo, a partir de Duarte I, voltaram a existir registos primitivos (e não registos reformados), com actos mais numerosos e mais bem conservados do que os livros de chancelaria dos reinados anteriores.
A chancelaria do rei Fernando I resume-se actualmente a quatro livros. O primeiro e o segundo são cópias do século XV e englobam todo o reinado. O terceiro é um livro original respeitante aos anos de 1381-1383. O quarto tem fólios originais dispersos que compunham alguns dos livros antigos da chancelaria fernandina, contendo actos produzidos nos anos de 1368-1378. Ao fazer a cópia do registo, o escriba riscava-o com um X ou um traço oblíquo, escrevendo por baixo traslado, passando depois ao registo seguinte, sobre o qual aplicava o mesmo processo. Esta triagem foi feita ao longo do tempo por diferentes agentes. No início, pelos próprios serviços de chancelaria que trabalhavam para Fernando I, depois pelo próprio Fernão Lopes, que foi guarda-mor da Torre e que teve ainda acesso aos dezassete livros iniciais da chancelaria fernandina, e, por fim, pelas depurações praticadas nos séculos XV e XVI. A partir do século XX, alguns historiadores chamaram a atenção para a suposta parcialidade do cronista. Horácio Ferreira Alves, por exemplo, alertou para o facto de as crónicas antigas, em que Fernão Lopes se baseou para escrever a história dos reis antigos, terem desaparecido depois dele. Na sua opinião, este desaparecimento foi intencional, já que a sua existência podia contrariar a verdade contada por Fernão Lopes. Enaltecer o reinado de João I, cujo filho sustentava o cronista, era imperioso, mas exigia que se deformassem e falsificassem os reinados anteriores, particularmente os de Pedro I e de Fernando I, de modo a que o governo de João I pudesse sobressair e ser aceite como uma tábua de salvação que reerguia Portugal da crise económica e social em que mergulhara no final do século XIV». In Isabel Pina Baleiras, Uma Rainha Inesperada, Leonor Teles, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2013, ISBN 978-989-644-230-9.

Cortesia de CLeitores/Temas e Debates/JDACT

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Psiu... Não digas nada. Não precisas de sussurrar palavras lindas ao meu ouvido. Não precisas de encher-me de esperanças vãs porque ambos sabemos que de nada servirá. Conforta-me com o teu olhar paradoxalmente paterno…»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Mas apreendeste as regras e ficaste à espera do dia em que tu e a tua irmã iriam fazê-lo sozinhos. Boa Javier! Sozinho, mas fizeste-o. És o orgulho de uma família que, lá de cima, olha para ti. Seria mais fácil, para tu perceberes a convulsão reinante, se a Raquel começasse por te contar a história assim: os empreiteiros cristãos constroem casas para os judeus, os artífices judeus trabalham para patrões cristãos, advogados judeus representam clientes cristãos nos tribunais seculares, correctores judeus agem como intermediários entre elementos cristãos e mouros, ou seja, existem contactos diários e contínuos que promovem tolerância religiosa e relação de amizade. Mas infelizmente tudo isso é tão remoto que ela será obrigada a dizer: bem-vindo ao mundo sombrio, à grande escalada dos conversos e aos azangos do nosso povo.
Primeiro o bum. E depois as labaredas. Num instante tudo passou a ser estranho, uma voz fatigada constituía o único elemento familiar. Vem Javier, chega mais perto. Talvez não me reconheças mas sou eu, a tua irmã Raquel. Não sinto as minhas pernas mas isso não tem qualquer importância. Abraça-me porque tenho frio. Pega-me ao colo mas não me leves daqui; não te vás embora porque tenho medo, medo de morrer sozinha. Eu aqui estou a chorar mas é o local mais seguro onde podemos estar. Não vês as minhas lágrimas porque elas se transformaram em sangue e é do meu coração que jorram. Tu és um homem e valente, nunca terás medo! Sim Javier. Aproxima-te e abraça a tua irmã Raquel. Nada de sussurros nem lamúrias. Já nada mudará.
Psiu... Não digas nada. Não precisas de sussurrar palavras lindas ao meu ouvido. Não precisas de encher-me de esperanças vãs porque ambos sabemos que de nada servirá. Conforta-me com o teu olhar paradoxalmente paterno e oferece-me os teus sentidos auditivos e toda a tua atenção. Afaga-me, mas não me deixes adormecer porque no sono embalar-me-ia eternamente e, com isso, perder-se-ia algo de muito valioso. Escuta com atenção porque a frágil linha que passará a guiar o teu destino terá pouco significado se não passares a ser detentor de certas informações. Escuta com atenção porque essas informações vão fortalecer e conduzir os teus dias.
É um esforço que vale a pena, Raquel. Javier precisa perceber alguma coisa, no meio de tanto alvoroço. Ele olha para ti perdido, mas prossegue porque, embora pouca, alguma coisa será assimilada. É a única forma de suavizar tamanha injustiça. Raquel, tu representas a última oportunidade de ele ouvir um protagonista. Vá, avança. É a história e a identidade do teu irmão. Pouco importa o que farás com tudo o que irás ouvir, o importante é que estas informações são tuas por direito. Aos nossos avós foram contados os capítulos mais remotos, mas, como não podia deixar de ser, o tempo encarregou-se de enriquecer o seu conteúdo. Hoje é tudo muito mais dramático. É uma cadeia! Cada um de nós é obrigado a memorizar, de forma meticulosa, cada pedra, cada pedaço de solo que suportaram os nossos passos. Terão de pisar, religiosamente, os mesmos terrenos, de modo a garantir a nossa sobrevivência, dar continuidade à história e assegurar a nossa presença, a presença dos seguidores da lei mosaica, nos tempos vindouros.
Tens toda a razão, Raquel. A diferença é grande em relação ao momento e à forma como os teus pais fizeram a passagem do património histórico. Foi numa gruta, talvez um pouco ansiosos, mas plenos de lucidez e, além disso, estavam reunidas todas as condições para que nenhum detalhe escapasse, nem nas memórias do narrador, nem nas insaciáveis curiosidades, angústias e perplexidades do ouvinte. Naquela altura, Javier, dormias. A sonhar com os anjos, se calhar. Eras incapaz de perceber a corrente. Mesmo agora, com apenas seis anos, não se pode esperar muito, mas o desabar dos acontecimentos não deixa alternativas». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

El fenómeno de la Luna azul. El Mundo. Mário Viciosa. « Tampoco será más grande. Ni más brillante. Será una Luna como otra cualquiera. Solo que será la segunda llena del mes. Fueron los anglosajones quienes bautizaron a este fenómeno del calendario...»

Cortesia de elmundo

«Azul, lo que es azul, no se verá la Luna este viernes. Tampoco será más grande. Ni más brillante. Será una Luna como otra cualquiera. Solo que será la segunda llena del mes. Fueron los anglosajones quienes bautizaron a este fenómeno del calendario con el nombre de blue moon (luna azul), a partir de una reinterpretación del término medieval belewe, que significaba traidor. La luna traidora lo era porque, en Primavera, exigía ampliar el ayuno de Cuaresma. Al principio, se refería a la cuarta luna llena de una estación. Pero un error en la revista Sky and Telescopes en 1946 dio a entender que era la segunda en un mismo mes. El astrónomo Donald W. Olson descubrió hace 16 años el error. Preparando un artículo para la citada revista, pudo leer en un almanaque de 1937 que había prevista una luna azul para Agosto de aquel año. La simple aritmética mostraba que era imposible que ésta fuese la segunda luna del mes. La definición debía de ser otra, pues 1937 solo tuvo 12 lunas llenas. Aquel verano, sin embargo, hubo cuatro y no tres. Revisando viejos almanaques se dio cuenta de que las lunas azules seguían un patrón estacional (Febrero, Mayo, Agosto y Noviembre). Pero ya era demasiado tarde. El saber popular había redefinido el fenómeno y, ya para siempre, blue moon será la segunda llena del mes. Las lunas azules se dan cada dos, tres o cuatro años. Nuestro satélite tarda aproximadamente 28 días en dar una vuelta alrededor de la Tierra. El desfase con el calendario gregoriano hace que se produzcan estas coincidencias. Claro está, no falta quien profetiza con el fin del mundo. Pero lo único que podemos profetizar con la ciencia en la mano es que el mes que viene sí que tendremos una superluna, en torno a un 16% más grande y un 30% más brillante debido a su cercanía a la Tierra. Pero su tono será invariable. Aunque, de qué color es la Luna? A veces la vemos blanca. Otras rojiza, como las lunas de sangre derivadas de los eclipses parciales. Y la tele nos la mostró, claro, en blanco y negro, allá en 1968. Pero su superficie es más bien marrón grisáceo, bien iluminada por el Sol. Así que el azul de la luna lo dejaremos para nuestro imaginario musical y televisivo. Y dejamos los misterios selenitas para la pareja de detectives que, en los ochenta, más hizo por popularizar el nombre de Blue Moon a través de su agencia». In Mário Viciosa, El fenómeno de la Luna azul, jornal El Mundo, , Espanha, Astronomía, 30/7/2015.

Cortesia de El Mundo

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Segue pela alameda sem nunca se desviar, vira no cotovelo, para a direita, depois sempre em frente, mas atenção, fica-lhe do lado direito, aí a uns dois terços do comprimento da rua, o jazigo é pequeno, é fácil não dar por ele»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) O eléctrico já chegou e partiu, Ricardo Reis vai sentado nele, sozinho no banco, pagou o seu bilhete de setenta e cinco centavos, com o tempo aprenderá a dizer, Um de sete e meio, e volta a ler a funérea despedida, não pode convencer-se de que seja Fernando Pessoa o destinatário dela, em verdade morto, se considerarmos a unanimidade das notícias, mas por causa das anfibologias gramaticais e léxicas que ele abominaria, tão mal o conheciam para assim lhe falarem ou falarem dele, aproveitaram-se da morte, estava de pés e mãos atados, atentemos naquele lírio branco e desfolhado, como rapariga morta de febre tifóide, naquele adjectivo gentil, meu Deus, que lembrança tão bacoca, com perdão da vulgar palavra, quando tinha o orador ali mesmo a morte substantiva que todo o mais deveria dispensar, em especial o resto, tudo tão pouco, e como gentil significa nobre, cavalheiro, garboso, elegante, agradável , cortês, é o que diz o dicionário, lugar de dizer, então a morte será dita nobre, ou cavalheira, ou garbosa, ou elegante, ou agradável, ou cortês, qual destas terá sido a dele, se no leito cristão do Hospital de S. Luís lhe foi permitido escolher, praza aos deuses que tenha sido agradável, com uma morte que o fosse, só se perderia a vida.
Quando Ricardo Reis chegou ao cemitério, estava a sineta do portão tocando, badalava aos ares um som de bronze rachado, como de quinta rústica, na dormência da sesta. Já a esconder-se, uma carreta levada a braço bambeava lutuosas sanefas, um grupo de gente escura seguia a carroça mortuária, vultos tapados de xales pretos e fatos masculinos de casamento, alguns lívidos crisântemos nos braços, outros ramos deles enfeitando os varandins superiores do esquife, nem mesmo as flores têm um destino igual. Sumiu-se a carreta lá para as profundas, e Ricardo Reis foi à administração, ao registo dos defuntos, perguntar onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa, falecido no dia trinta do mês passado, enterrado no dia dois do que corre, recolhido neste cemitério até ao fim dos tempos, quando Deus mandar acordar os poetas da sua provisória morte. O funcionário compreende que está perante pessoa ilustrada e de distinção, explica solícito, dá a rua, o número, que isto é como uma cidade, caro senhor, e, porque se confunde nas demonstrações, sai para este lado do balcão, vem cá fora, e aponta, já definitivo, Segue pela alameda sem nunca se desviar, vira no cotovelo, para a direita, depois sempre em frente, mas atenção, fica-lhe do lado direito, aí a uns dois terços do comprimento da rua, o jazigo é pequeno, é fácil não dar por ele. Ricardo Reis agradeceu as explicações, tomou os ventos que do largo vinham sobre mar e rio, não ouviu que fossem eles gemebundos como a cemitério conviria, apenas estão os ares cinzentos, húmidos os mármores e liozes da recente chuva, e mais verde-negros os ciprestes, vai descendo por esta álea como lhe disseram, à procura do quatro mil trezentos e setenta e um, roda que amanhã não anda, andou já, e não andará mais, saiu-lhe o destino, não a sorte. A rua desce suavemente, como em passeio, ao menos não foram esforçados os últimos passos, a derradeira caminhada, o final acompanhamento, que a Fernando Pessoa ninguém tornará a acompanhar, se em vida realmente o fizeram aqueles que em morto o seguiram. É este o cotovelo que devemos virar. Perguntamo-nos que viemos cá fazer, que lágrima foi que guardámos para verter aqui, e porquê, se as não chorámos em tempo próprio, talvez por ter sido então menor a dor que o espanto, só depois é que ela veio, surda, como se todo o corpo fosse um único músculo pisado por dentro, sem nódoa negra que de nós mostrasse o lugar do luto. De um lado e do outro os jazigos têm as portas fechadas, tapadas as vidraças por cortininhas de renda, alva bretanha como de lençóis, finíssimas flores bordadas entre dois prantos, ou de pesado croché tecido por agulhas como espadas nuas, ou richeliâ, ou ajur, modos de dizer afrancesados, pronunciados sabe Deus como, tal qual as crianças do Highland Brigade que a estas horas vai longe, navegando para o norte, em mares onde o sal das lágrimas lusíadas é só de pescadores, entre as vagas que os matam, ou de gente sua, gritando na praia, as linhas fê-las a companhia coats and clark, marca âncora, para da história trágico-marítima não sairmos». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT

Quando o Cuco Chama. Robert Galbraith. «Porque morreste quando os cordeiros nasciam? Devias ter morrido quando as maçãs caíam, quando o gafanhoto corre perigo, e são restolho empapado os campos de trigo. E todos os ventos suspiram…»

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«Porque nasceste quando a neve tombava?
Devias ter vindo quando o cuco chamava.
Ou quando as uvas estão verdes nas vinhas
ou pelo menos quando as lestas andorinhas
voam para escapar
ao verão a acabar.

Porque morreste quando os cordeiros nasciam?
Devias ter morrido quando as maçãs caíam,
quando o gafanhoto corre perigo,
e são restolho empapado os campos de trigo.
E todos os ventos suspiram
pelas doces coisas que agonizam».
In Christina Rossetti, A Dirge

«Embora os vinte e cinco anos da vida de Robin Ellacott já tivessem tido os seus momentos de drama e de acontecimentos especiais, nunca antes ela tinha acordado com a certeza de que viria a recordar o dia que aí vinha para toda a vida. Pouco depois da meia-noite, o seu namorado de longa data, Matthew, tinha-a pedido em casamento por baixo da estátua de Eros, no meio de Piccadilly Circus. No alívio estonteado que se seguiu à aceitação dela, ele confessou que tinha planeado fazer-lhe o pedido no restaurante tailandês onde tinham jantado, mas que não tinha contado com o casal silencioso na mesa ao lado, que passara o tempo a escutar a conversa deles. Por isso, ele sugeriu um passeio pelas ruas no escuro, apesar dos protestos de Robin de que ambos precisavam de se levantar cedo, e finalmente a inspiração apoderou-se dele e conduziu-a, perplexa, aos degraus da estátua. Aí, atirando a discrição ao vento gélido (de uma maneira que não era nada típica dele), pediu-a em casamento, de joelho no chão, em frente a três sem-abrigo encolhidos nos degraus a partilhar o que parecia ser uma garrafa de álcool etílico.
Tinha sido, na opinião de Robin, o pedido de casamento mais perfeito de toda a história do matrimónio. Ele até tinha um anel no bolso, que ela usava agora; tinha uma safira e dois diamantes, servia-lhe na perfeição e durante todo o caminho até ao centro foi a fitá-lo na mão pousada no regaço. Ela e Matthew tinham agora uma história para contar, uma história de família engraçada, do tipo que se contava aos filhos, na qual os planos dele (ela adorava que ele tivesse feito planos) saíam furados e se transformavam em algo espontâneo. Ela adorava os vagabundos e a lua, e Matthew, em pânico e nervoso, de joelho no chão; adorava Eros e a velha e suja Piccadilly e o táxi preto que tinham apanhado para casa, para Clapham. De facto, não estava longe de adorar toda a cidade de Londres, que até àquela altura não a tinha ainda convencido, ao fim de um mês a viver lá. Até os passageiros macilentos e mal-encarados, apertados à sua volta na carruagem do metro, estavam banhados pela luz radiante do anel; e quando saiu para a luz do dia gélido de Março na estação de metro de Tottenham Court Road, acariciou a parte de baixo do anel de platina com o polegar e sentiu uma explosão de felicidade ao pensar que talvez comprasse umas revistas de noivas à hora do almoço.
Olhares masculinos demoravam-se nela enquanto abria caminho por entre as obras que estavam a decorrer no topo de Oxford Street, consultando um pedaço de papel que segurava na mão direita. Robin era, por quaisquer padrões, uma rapariga bonita; alta e bem feita, com cabelo louro arruivado que ondulava com as suas passadas rápidas, e com o ar frio a dar cor às suas faces pálidas. Este era o primeiro dia de uma colocação como secretária por uma semana. Robin fazia trabalhos temporários desde que tinha vindo viver com Matthew em Londres, embora não por muito mais tempo; já tinha aquilo a que chamava entrevistas a sério marcadas. Muitas vezes, o maior desafio destes trabalhos ocasionais pouco inspiradores era encontrar os escritórios. Londres, depois da pequena cidade no condado de York que ela deixara, parecia vasta, complexa e impenetrável. Matthew tinha-lhe dito para não andar pelas ruas com o nariz enfiado no roteiro da cidade, porque a faria parecer uma turista e a tornaria mais vulnerável; por isso, na maior parte das vezes ela guiava-se por mapas mal desenhados que alguém na agência de trabalho temporário lhe fazia. Não estava convencida de que essa atitude lhe desse o ar de uma londrina de gema». In Robert Galbraith, Quando o Cuco Chama, tradução de Ana Saldanha, Maria Segurado e Rita Figueiredo, Editorial Presença, 2013, ISBN 978-972-235-153-9.

Cortesia da EPresença/JDACT

Uma Rainha Inesperada. Isabel Pina Baleiras. «Numa carta de 19 de Março de 1434, o monarca encarregou-o de pôr em crónica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram, isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes virtudes el-rei meu senhor e padre, cuja alma Deus haja»

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Fernão Lopes, a verdade e a história
«As crónicas de Fernão Lopes sobre os rei Fernando I e João I (primeira parte) constituem a fonte do nosso conhecimento sobre a vida de dona Leonor Teles. Quanto à participação da rainha no reinado de Fernando I e na regência, é possível encontrar outras fontes) como os diplomas da chancelaria do rei (serviço responsável pela elaboração dos documentos régios) ou outros ligados aos mosteiros com os quais ela se relacionou. Por ora, debrucemo-nos sobre o cronista e conheçamos um pouco da sua vida e obra na pequena cronologia que se segue: 1380. Nascimento provável de Fernão Lopes, no seio de uma família de camponeses ou de mesteirais, em Lisboa. 1418. Data apontada para o início da sua carreira de guarda-mor da Torre do Tombo. Simultaneamente, foi escrivão do rei João I e do infante Duarte. 1419. Por ordem do infante Duarte, começou a escrever a Crónica dos sete primeiros reis de Portugal. Parece ter iniciado, também, as crónicas sobre Pedro I e Fernando I e as duas partes da crónica sobre João I. 1422. Exercício do cargo de escrivão de puridade (espécie de secretário dos assuntos particulares) do infante Fernando. 1434. Duarte, agora já rei, oficializou o trabalho de Fernão Lopes, que o deve ter iniciado em 1479. Numa carta de 19 de Março de 1434, o monarca encarregou-o de pôr em crónica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram, isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes virtudes el-rei meu senhor e padre, cuja alma Deus haja. Em troca deste trabalho, o escritor recebeu uma tença de 14 000 reais anuais. Parece ter-lhe sido, igualmente, passada uma carta de nobreza, usando ele, a partir desta altura, o título de vassalo de el-rei; redacção da Crónica de D. Pedro I.
1437.Início da elaboração da Crónica de D. Fernando, cija redacção terá terminado em 1443. 1439. O regente Pedro confirmou-lhe a tença concedida por Duarte I, que falecera no ano anterior. 1443. Final da redacção da Crónica de D. Fernando; final da redacção da Crónica de D. João, Primeira Parte. 1449. Afonso V aumentou a tença anual do cronista para 20 000 reais anuais. Final da redação da Crónica de D. João I, segunda parte. 1454. Foi substituído no cargo de guardador das escrituras do Tombo, por Gomes Eanes Zurara, devido à idade avançada e a um estado de saúde mais debilitado. 1460. Data provável da sua morre.
As fontes utilizadas pelo cronista parece terem sido: crónicas de Pero López Ayala; Crónica do condestabre, anónima; redigida possivelmente entre 1431 e 1436; crónica latina sobre o reinado de João I, que Fernão Lopes atribuiu ao Doutor Christophorus; a crónica de Martim Afonso Melo, mencionada pelo próprio Lopes, no capítulo 47 da Crónica de D. Fernando; Livro de linhagens do conde D. Pedro. A obra de Ayala serviu como fonte para cinquenta e cinco capítulos da Crónica de D. Fernando, e a Crónica de Don Juan I foi aproveitada em setenta capítulos da Crónica de D. João I. A utilização da Crónica do condestabre como fonte é quase total; apenas oito capítulos não são utilizados por Lopes. As fontes narrativas dominaram a pesquisa de Fernão Lopes e a consulta das fontes documentais ocorreu, de forma pontual, somente para completar o relato. Primeira publicação das suas obras: 1644. Crónica de D. João I; 1735. Crónica de D. Pedro I; 1816. Crónica de D. Fernando». In Isabel Pina Baleiras, Uma Rainha Inesperada, Leonor Teles, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2013, ISBN 978-989-644-230-9.

Cortesia de CLeitores/Temas e Debates/JDACT

quarta-feira, 29 de julho de 2015

O Cavaleiro de Olivença João Paulo O Costa. «Procissão fúnebre terminara e o caixão da rainha repousava nas Carmelitas. No paço, encerrava-se uma época. Alguns criados circulavam pelo pátio exterior e o portão abriu-se, para que saíssem os soldados que faziam a guarda…»

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«(…) A rainha Joana morreu como viveu a maior parte da sua vida. Só, rodeada apenas por seus servidores, sem aparato, mas também sem a assistência que tantas vezes fazia do falecimento de um soberano um espectáculo mórbido. Morto, aquele corpo que tanto viajara nos primeiros trinta anos de vida, e que tinha estado encerrado .dentro daquela pequena vila durante quarenta e seis anos, tinha uma pequeníssima viagem pela frente. Ia ser levado para o mosteiro de Santa Clara, que ficava a uns duzentos passos do palácio e onde repousava o corpo de seu marido, Filipe, o Belo, a grande paixão da sua vida, e aí ficaram os dois a aguardar o que seus descendentes decidiriam sobre a derradeira morada do casal real.
Quem mais teria Joana amado? Quem merecera o afecto da pobre rainha? Os seus filhos decerto, sobretudo Catarina. a infanta nascida com a mãe já viúva e que permanecera junto dela, mesmo na clausura de Tordesilhas, até seu irmão a enviar para Portugal, onde ainda então era rainha. Voltara Joana a apaixonar-se depois da morte de Filipe? Tivera no se seu íntimo outros amigos? Com o falecimento de Joana todos os seus sentimentos e recordações também morriam. Vidas antigas, que haviam convivido consigo noutros tempos apagavam-se mais um pouco, ou desapareciam de vez, com a extinção da memória da rainha. Mas de seus amigos nada ficou registado, à excepção do amor apaixonadíssimo por Filipe…, e talvez nada mais houvesse, de facto, para registar. Por isso, termina aqui a História e começa o romance.

O amigo da rainha
Procissão fúnebre terminara e o caixão da rainha repousava nas Carmelitas. No paço, encerrava-se uma época. Alguns criados circulavam pelo pátio exterior e o portão abriu-se, para que saíssem os soldados que faziam a guarda da rainha e que acabavam de ser desmobilizados. No pátio interior, duas costureiras discutiam, por causa de um lençol que não chegara a ser inventariado. Numa das câmaras do andar superior, a velha Aldonça viu o portão a fechar-se outra vez e suspirou com melancolia; depois foi espreitar na janela do lado oposto, pois a discussão das costureiras descambara em gritaria. Entretanto, ouviu Dolores a chamá-la e percorreu o corredor até este se cruzar com outro perpendicular, cujas portas estavam abertas, proporcionando o desfrute de uma vista bonita sobre o Douro. Virou à direita e foi até aos antigos aposentos da rainha.
Passada meia hora de relógio, as duas camareiras continuavam a arrumar o fato da falecida. Os vestidos haviam sido guardados em arcas; noutras tinham depositado lençóis e cobertas. A maior parte da roupa que era acondicionada pertencera à velhinha que fora sendo esquecida pelo mundo e que não tinha uma corte para impressionar, mas ao remexerem os pertences de sua senhora, Aldonça e Dolores encontraram vestidos antigos que tinham as cores garridas da época em que Joana estava no centro do poder e daí deslumbrava a sua corte e irradiava uma força indómita». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT

Os bons velhos tempos da prostituição em Portugal. Alfredo A. Pessoa. «Os Fenícios chamavam a Astarte a mãe dos deuses. Instalando-se nas costas meridionais da Espanha, este povo não tardou a corromper os costumes primitivos dos indígenas, que seduziam com o seu comércio e com os seus costumes…»

Cortesia de rosa ramalho 
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Os Fenícios: suas deusas impuras, que afinal eram os órgãos sexuais da mulher
«(…) Nas festas de Astarte, era enorme a multidão aglomerada nos templos, multidão que não se compunha só de fenícios, mas também de estrangeiros, porque o obsceno culto da deusa lisonjeava as paixões de todos os povos. A deusa Astarte de Tiro e Sídon encontrava facilmente adeptos por toda a parte para onde era levada. Os adoradores de Milita, Anaítis, Urânia, Mirta, ou de qualquer outra divindade propícia aos extravios da sensualidade, não podiam mostrar-se adversos à boa deusa fenícia, tão condescendente para todas as fraquezas, tão propensa a favorecer o vício! Sob a tenda sagrada onde as mulheres fenícias, casadas ou solteiras, e as escravas dos mercadores esperavam as carícias dos romeiros, havia lugar amplo para todos, e o estrangeiro, o hóspede, era recebido até com uma notável predilecção. Eram para ele as mulheres mais formosas e as provocações mais lascivas, e quando o sacerdote fazia ressoar o pandeiro religioso, os braços voluptuosos das sacerdotisas de Astarte abriam-se para quem queria, num abandono prometedor das mais requintadas delícias. Mais tarde, nestas cerimónias lúbricas, o pandeiro sagrado foi substituído por instrumentos mais aperfeiçoados e a lira, a flauta e o saltério dos orientais vieram estimular a libertinagem dos actores, juntando o seu encanto voluptuoso à música dos ósculos ardentes daquelas mulheres sensuais. Às festas de Astarte associavam-se também as festas de Adónis. Depois dos sacrifícios a Posídon, o deus marinho protector dos navegantes, Adónis, a personificação divina da natureza máscula, recebia também as homenagens dos fenícios. Em honra deste deus caçador devorado por um javali, e continuamente chorado por Vénus, celebravam-se as festas fúnebres e as festas da alegria. As festas fúnebres constavam de lamentações e, durante elas, a imensa multidão cosmopolita vagueava em torno do templo, onde as mulheres iam sacrificar ao deus o seu pudor e os seus cabelos. Ao coro de lamentações sucediam-se bem depressa as fustigações. As mulheres batiam-se mutuamente com as mãos, e às vezes com varas. Sob o pórtico estava, nesses dias, a estátua falófora do deus ressuscitado e, apenas o simulacro aparecia, casadas e solteiras eram obrigadas a ceder os cabelos ao altar ou o corpo à prostituição. Quando se obstinavam em conservar as tranças, dirigiam-se a uma espécie de mercado, onde desta vez só os estrangeiros podiam ter acesso. Conta Luciano que essas pobres mulheres estavam ali à venda um dia inteiro, entregando-se ao tráfico desonesto todas as vezes que eram solicitadas e retribuídas. Depois das festas patéticas, seguiam-se as festas da alegria e, por essa ocasião, praticavam-se no recinto do templo espantosas monstruosidades. Os Fenícios chamavam a Astarte a mãe dos deuses. Instalando-se nas costas meridionais da Espanha, este povo não tardou a corromper os costumes primitivos dos indígenas, que seduziam com o seu comércio e com os seus costumes dissolutos. Até ao promontório sacro, hoje cabo de São Vicente, o litoral do Algarve foi logo povoado de feitorias fenícias e, por toda a parte, o culto depravado de Astarte encontrou milhares de prosélitos». In Alfredo Amorim Pessoa, Os bons velhos tempos da prostituição em Portugal, Antologia, 1887, Anotações, 1976, Antígona_Frenesi, 2006, Lisboa, ISBN 972-608-175-0.

Cortesia de Antígona /JDACT

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Virara-a antes de se levantar, e a areia corria, num deslizar perpétuo. Álvaro vira-a na casa de Filipa Andrade, quando tinha quinze anos. Era o único do seu grupo de amigos que ainda não se estreara com mulheres, e certo dia decidiu inaugurar-se…»

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A ampulheta
«(…) Álvaro ergueu-se a custo, e procurou uma folha no aparador. Na ânsia de chegar ao papel derrubou uma estatueta de marfim que Vasco da Gama lhe trouxera da longínqua Calecut. Peça curiosa, aquela. Os índios afiançaram-me que é Nossa Senhora, dissera-lhe o Gama, quando o visitara, depois do regresso da jornada venturosa. Tem quatro braços, comentara Álvaro, duvidoso. Tendes razão, velho amigo. Por certo, esta é a Senhora deles, porém, não me parece que seja a nossa, a bendita mãe de Jesus Cristo, Nosso Senhor, insistira o Ataíde. Por aquelas partes os cristãos têm práticas diferentes das da nossa Cristandade, respondera o navegador, com visível hesitacão. Será que são mesmo cristãos, senhor almirante?, inquirira o velho, com uma ponta de malícia.
Incomodado, Vasco da Gama insistira: Têm de ser..., el-rei deseja muito. E não seguem a Lei de Mafoma. Álvaro não insistira com o Gama, que, ao tempo, era adulado por toda a corte. Fora amigo de infância do avô e gostava do rapaz, contudo, parecia-lhe que a cristandade da Índia era coisa duvidosa. Já o dissera a el-rei Manuel I, mas o monarca sorrira-lhe, pedira-lhe que não se preocupasse com tais matérias e lembrara-lhe que esperava os seus novos versos para os festejos do seu casamento com a infanta dona Maria. A armada de Pedro Álvares Gouveia já estaria, por certo, em Calecut, e o caso seria esclarecido aquando do seu regresso, se tudo corresse bem. Álvaro suspirou, como fazia amiúde nos últimos meses sempre que se lembrava da poderosa armada que Manuel I despachara para a Índia no mês de Março, receoso de não ver a chegada do Gouveia. Conhecia bem o fidalgo, cujo avô, Fernando Álvares Cabral, vira tombar, ferido de morte pelos mouros, enquanto defendia o infante Henrique na desastrosa jornada de Tânger.
Reergueu a estatueta e voltou para a mesa, tão depressa quanto o corpo lhe permitia. Faltava-lhe o velho Tobias, o único escravo que tivera e que morrera há dois anos; não comprara outro por pensar que já não viveria muito tempo, todavia, agora, estava arrependido; o criado que o servia era distraído e petulante. Quando se sentou, notou que a folha ganhara um vinco; noutros tempos, teria pedido a Tobias que lhe fosse buscar outra, mas como o corpo lhe pesava e o criado como que se esfumara, conformou-se com o sinal de desleixo, que o carmelita, por certo, não levaria a mal. Preparava-se para mergulhar a pena no tinteiro, mas interrompeu o gesto para admirar os raios de sol que faiscavam por entre as ameias das torres das Portas de Santa Catarina; momentaneamente distraído, esqueceu a escrita urgente enquanto os seus olhos pousavam sobre a ampulheta. Virara-a antes de se levantar, e a areia corria, num deslizar perpétuo.
Álvaro vira-a na casa de Filipa Andrade, quando tinha quinze anos. Era o único do seu grupo de amigos que ainda não se estreara com mulheres, e certo dia decidiu inaugurar-se com essa Filipa. Corria voz que recebia bem a troco de umas moedas, e Tristão Coutinho afiançou-lhe que era mulher de bom corpo e paciente com os novatos. Pouco mais velha que eles, a vida encarregara-se de a tornar experiente. Álvaro bateu à porta, e uma cara lindíssima espreitou, sorrindo convidativamente, mas com sobranceria. Deslumbrado, Álvaro balbuciou as suas intenções, mostrando discretamente as três moedas que juntara nos últimos dias. Filipa abriu a porta. Quando ficaram a sós, estendeu a mão e ele depositou-lhe as moedas, sentindo por um breve instante a suavidade da sua pele. Olhando-o sedutoramente, Filipa puxou por dois cordões do seu vestido, ficando nua à sua frente. Ele corou, de boca aberta, e começou a libertar-se das suas roupas, rasgando as calças devido à precipitação. Quando se preparava para investir sobre o corpo nu, Filipa travou-o e mostrou-lhe a ampulheta. Ergueu o estranho objecto, rodopiou-o e assentou-o com estrondo sobre a mesa. Cabrito, serei tua até que a areia pare de cair. As tuas moedas não valem mais». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT

terça-feira, 28 de julho de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Segue sozinho Javier, usa a tua inocência como arma de defesa. Apreendeste o caminho e as regras ensinadas pela tua avó, aplica-as na perfeição, miúdo. Sabes o percurso de olhos fechados, então não hesites»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) A punição está a começar e o vosso destino está traçado. Tu já és uma mulherzinha, por isso seguirás o mesmo caminho delineado para os teus pais e a tua avó. Uma longa tortura que terminará na fogueira. A fogueira da Inquisição (maldita). Não questiones os métodos, Raquel. O objectivo é arrancar os demónios que consomem as vossas almas e depois purificá-las através das chamas, antes de se apresentarem diante de Deus. Ah, não te esqueças: eles estão ao serviço de Deus. Quanto ao teu irmão Javier, muito provavelmente será entregue às ordens religiosas para fazerem dele um cristão exemplar. Os comissários do Santo Ofício (maldito) estão a irromper pela vossa casa adentro. Vai! Agarra o Javier pelo braço e escondam-se. Tu conheces muito bem o caminho e foste ensinada que este túnel e as suas ramificações constituem a última esperança. Não, não, não e não, Raquel. Não fiques nas imediações a espreitar. Não sejas teimosa!
Segue sozinho Javier, usa a tua inocência como arma de defesa. Apreendeste o caminho e as regras ensinadas pela tua avó, aplica-as na perfeição, miúdo. Sabes o percurso de olhos fechados, então não hesites. Nada disso, não vais temer os monstros dos teus sonhos, eles não vão invadir os becos escuros nem te lançarão em pânico. Pensa nos anjos e vai até ao fim, tal como te ensinaram. Vai! E tu Raquel, satisfeita? Acabaste de ver os teus pais e a tua avó serem brutalmente assassinados. Percebeste o subterfúgio? Todas as lengalengas do teu pai eram para dar tempo, a ti e ao teu irmão, para fugirem. Isso enfureceu-os, mas, seja como for, ele nunca iria denunciar o vosso paradeiro. Claro! Eles parecem pouco lúcidos e agora prosseguem no vosso encalço revirando a casa. Sem qualquer clarividência, é verdade, mas Raquel eles não vão ficar por aqui. Ainda vais a tempo de fugir e te juntares ao teu irmão. Ele precisa de ti. Não percas tempo em lamúrias.
Estás a ver? Agora passaram ao saque, estão a rapar tudo o que é facilmente transportável. Estás a imaginar como é que tudo isso vai acabar, não estás? Estava-se mesmo a ver! Para terminar lançaram fogo à vossa casa. Podias estar longe neste momento, mas foste reimosa e agora é demasiado tarde... Num sopro de horror tudo se extinguiu através das chamas. É difícil aplaudir um milagre no meio da tragédia, mas parabéns Javier! Regras são regras e devem ser cumpridas. A tua avó sente-se orgulhosa porque as suas palavras, pelo menos para ti, não foram em vão. A qualquer momento terão a necessidade de fazer o percurso sem a minha companhia. É sinal de que chegou o momento... Quando chegar o momento, terão de ser rápidos e silenciosos para não serem derrotados... Ninguém pode saber da existência desse túnel e muito menos de que vocês estão a ser preparados para isso... Sair por uma passagem secreta, arrastar-se ao longo de vários metros numa escuridão absoluta, de mãos dadas, até atingir uma gruta do outro lado do quintal completamente disfarçado no meio de árvores, arbustos e capins é algo que a tua tenra idade não te permitiu entender». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT

A Rosa do Povo. Poesia. Carlos D. Andrade. «A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são. O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não tem importância»

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Consideração do Poema
«Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amaradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus,
Maiacovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizrt de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é mais do que ela. É qualquer homem.
ao meio dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
Há mortos? Há mercados? Há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas
principiantes rugas!
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, e peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
os últimos! Esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te invadindo.

Como fugir ao mínimo objecto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casas,
como orvalho entre dedos
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa».
Poema de Carlos Drummond de Andrade, in ‘A Rosa do Povo

In Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, Livraria José Olympo Editora, São Paulo, 1945.

Cortesia de LJoséOlympio/JDACT