terça-feira, 28 de julho de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Segue sozinho Javier, usa a tua inocência como arma de defesa. Apreendeste o caminho e as regras ensinadas pela tua avó, aplica-as na perfeição, miúdo. Sabes o percurso de olhos fechados, então não hesites»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) A punição está a começar e o vosso destino está traçado. Tu já és uma mulherzinha, por isso seguirás o mesmo caminho delineado para os teus pais e a tua avó. Uma longa tortura que terminará na fogueira. A fogueira da Inquisição (maldita). Não questiones os métodos, Raquel. O objectivo é arrancar os demónios que consomem as vossas almas e depois purificá-las através das chamas, antes de se apresentarem diante de Deus. Ah, não te esqueças: eles estão ao serviço de Deus. Quanto ao teu irmão Javier, muito provavelmente será entregue às ordens religiosas para fazerem dele um cristão exemplar. Os comissários do Santo Ofício (maldito) estão a irromper pela vossa casa adentro. Vai! Agarra o Javier pelo braço e escondam-se. Tu conheces muito bem o caminho e foste ensinada que este túnel e as suas ramificações constituem a última esperança. Não, não, não e não, Raquel. Não fiques nas imediações a espreitar. Não sejas teimosa!
Segue sozinho Javier, usa a tua inocência como arma de defesa. Apreendeste o caminho e as regras ensinadas pela tua avó, aplica-as na perfeição, miúdo. Sabes o percurso de olhos fechados, então não hesites. Nada disso, não vais temer os monstros dos teus sonhos, eles não vão invadir os becos escuros nem te lançarão em pânico. Pensa nos anjos e vai até ao fim, tal como te ensinaram. Vai! E tu Raquel, satisfeita? Acabaste de ver os teus pais e a tua avó serem brutalmente assassinados. Percebeste o subterfúgio? Todas as lengalengas do teu pai eram para dar tempo, a ti e ao teu irmão, para fugirem. Isso enfureceu-os, mas, seja como for, ele nunca iria denunciar o vosso paradeiro. Claro! Eles parecem pouco lúcidos e agora prosseguem no vosso encalço revirando a casa. Sem qualquer clarividência, é verdade, mas Raquel eles não vão ficar por aqui. Ainda vais a tempo de fugir e te juntares ao teu irmão. Ele precisa de ti. Não percas tempo em lamúrias.
Estás a ver? Agora passaram ao saque, estão a rapar tudo o que é facilmente transportável. Estás a imaginar como é que tudo isso vai acabar, não estás? Estava-se mesmo a ver! Para terminar lançaram fogo à vossa casa. Podias estar longe neste momento, mas foste reimosa e agora é demasiado tarde... Num sopro de horror tudo se extinguiu através das chamas. É difícil aplaudir um milagre no meio da tragédia, mas parabéns Javier! Regras são regras e devem ser cumpridas. A tua avó sente-se orgulhosa porque as suas palavras, pelo menos para ti, não foram em vão. A qualquer momento terão a necessidade de fazer o percurso sem a minha companhia. É sinal de que chegou o momento... Quando chegar o momento, terão de ser rápidos e silenciosos para não serem derrotados... Ninguém pode saber da existência desse túnel e muito menos de que vocês estão a ser preparados para isso... Sair por uma passagem secreta, arrastar-se ao longo de vários metros numa escuridão absoluta, de mãos dadas, até atingir uma gruta do outro lado do quintal completamente disfarçado no meio de árvores, arbustos e capins é algo que a tua tenra idade não te permitiu entender». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT