quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Conquista de Lisboa. 1578 1583. Violência Militar. Comunidade Política. Rafael Valladares. «A quem ignorou completamente foi ao bastardo António, Prior do Crato, com quem as fricções pessoais já vinham de longe. Todavia, de um ponto de vista prático, o duelo cingia-se ao rei Filipe e à sua prima Catarina»

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Violência
A escolha de Alba
«(…) A falta de paciência consumia a todos por igual, em Portugal e no reino de Filipe. o ano de 1579 decorrera entre negociações mais ou menos prometedoras, mas com o pano de fundo de um rei Henrique inflexível na hora de nomear sucessor e umas Cortes do reino inauguradas a 1 de Abril para tentar chegar a algum tipo de consenso relativo à herança. Deste parlamento saiu uma lista de quinze membros da nobreza, entre os quais o monarca escolheu cinco destinados a actuar como governadores de Portugal caso ele falecesse antes de designar sucessor. Decidiu-se também constituir um tribunal de onze juristas, cujas atribuições seriam identificar o candidato legítimo conforme o Direito, caso o cardeal-rei Henrique falecesse antes de terminar a sua tarefa. De pouco serviu, porém, a insistência de Filipe II em martelar a consciência do seu tio com os perigos que pairavam sobre o reino se não abrisse o caminho para o trono. O velho cardeal-rei pensou primeiro em casar-se, com a prévia dispensa de Roma, e, aparentemente, concentrou de imediato as suas preferências na sua outra sobrinha, a duquesa de Bragança, dona Catarina, casada com o duque titular. A quem ignorou completamente foi ao bastardo António, Prior do Crato, com quem as fricções pessoais já vinham de longe. Todavia, de um ponto de vista prático, o duelo cingia-se ao rei Filipe e à sua prima Catarina, sendo o primeiro filho de infanta portuguesa, mas varão, e a segunda filha de infante luso, mas mulher. Quem deveria ter prioridade? O direito da época não permitia uma decisão irrefutável nessa questão, o que obrigou o cardeal-rei Henrique a navegar entre dúvidas e pressões diante das quais o seu único objectivo, como alguns o acusavam, visava sobreviver politicamente até à sua morte física. Se no começo do seu reinado parece ter simpatizado com dona Catarina, a rejeição que a casa de Bragança suscitava entre muitos nobres do reino, devido a ciúmes de linhagem, levou-o a suspender qualquer decisão por temer desencadear reacções violentas entre os seguidores dos candidatos derrotados. Entre a restante população, os Bragança, mais do que desprezo, não suscitavam apoios, o que também esclarece até que ponto a condição de natural do reino não era decisiva para subir ao trono. A escassa popularidade dos Bragança gerou um grave problema para o cardeal-rei, quando se apercebeu de que ao duque não aumentam os amigos com o desfavor de António, Prior do Crato. Em Janeiro de 1579, Moura informava que o cardeal-rei seguia o conselho daqueles que lhe propunham não nomear herdeiro em vida, se a deseja passar descansada, porque se nomeasse a Bragança teria Vossa Majestade por inimigo, e se declarar Vossa Majestade, o senhor António, Prior do Crato, e Bragança manifestar-se-ão no país, pelo que será melhor viver sossegado e depois que se entendam todos. E concluía: Este conselho bem pode ser saudável para o corpo; não sei se o será tanto para a alma.
Ainda que a exposição dos factos fosse digna de crédito, a censura ao monarca por não cumprir as suas obrigações morais, pelo contrário, não era aceitável. Na realidade, a aparente indeterminação do cardeal rei Henrique derivava precisamente do seu alto sentido de responsabilidade política que o destino, não a sua escolha, lançara sobre a sua pessoa. Eclesiástico severo e imbuído do espírito de Trento, inquisidor-geral e príncipe da Igreja, o cardeal-rei Henrique empreendera a sua cruzada política particular após a morte do seu sobrinho Sebastião I, através de uma purga da corte plena de visitas e cárcere que deixara vítimas no curto caminho percorrido desde Agosto de 1578. A mudança de regime tirou partido do desastre em África para justificar os castigos, de modo que muitos daqueles que foram acusados precisavam apenas de uma decisão inoportuna do monarca para se lançarem na desestabilização de uma arena política já bastante instável (o rei vai-se tornando muito mal querido porque são muitos os que castiga e a ninguém faz mercê, e tudo isto redunda em benefício de Vossa Majestade, porque se vos oferece matéria para cativar esta gente, favorecendo-a nos seus trabalhos, in Codoin, Lisboa, 18 de Janeiro de 1579; também Roiz Soares, no seu Memorial, fala da queda deste bando dos Silvas e Távoras, que no tal tempo eram os cônsules de tudo; outro grande prejudicado foi Pedro Alcáçova, homem-chave no governo sebastianista que sofreu um processo e o desterro de Lisboa). Face à polarização a que chegara o debate dinástico em 1579, só um cego não teria visto que nenhum dos candidatos que o rei escolhesse conseguiria evitar o eclodir do banditismo político em Portugal e talvez a fractura civil do reino. Em Janeiro de 1580, ainda em vida do cardeal-rei Henrique, Filipe II ordenou ao duque de Medina Sidónia que fizesse chegar a Bragança como em segredo e por via de advertência aos seus principais criados e amigos, que lhe convém a vida em que o rei de Portugal não se pronuncie em seu favor, porque teria guerra em casa e isso seria a causa da ruína naquele reino e, consequentemente, da sua posição, e que o que mais lhe convém seria tratar das suas coisas antes da sentença, porque podeis ter por certo que terei para com ele muita indulgência por evitar a ocasião de ruptura. Não era, portanto, violência e ameaças o que faltava em Portugal nos começos de 1580. Ao optar por deixar a solução nas mãos das Cortes ou, na sua falta, de um congresso de juristas também emanado da assembleia, a hipótese mais razoável consiste em pensar que o cardeal-rei tratou de conter o perigo de uma guerra civil do modo mais institucional e responsável que pôde, ou que soube». In Rafael Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência Militar e Comunidade Política em Portugal, tradução de Manuel Marques, Texto Editores, Alfragide, 2010, ISBN 978-972-47-4111-6.

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