Violência
A
escolha de Alba
«(…)
A falta de paciência consumia a todos por igual, em Portugal e no reino de
Filipe. o ano de 1579 decorrera
entre negociações mais ou menos prometedoras, mas com o pano de fundo de um rei
Henrique inflexível na hora de nomear sucessor e umas Cortes do reino
inauguradas a 1 de Abril para tentar chegar a algum tipo de consenso relativo à
herança. Deste parlamento saiu uma lista de quinze membros da nobreza, entre os
quais o monarca escolheu cinco destinados a actuar como governadores de
Portugal caso ele falecesse antes de designar sucessor. Decidiu-se também
constituir um tribunal de onze juristas, cujas atribuições seriam identificar o
candidato legítimo conforme o Direito, caso o cardeal-rei Henrique falecesse antes
de terminar a sua tarefa. De pouco serviu, porém, a insistência de Filipe II em
martelar a consciência do seu tio com os perigos que pairavam sobre o reino se
não abrisse o caminho para o trono. O velho cardeal-rei pensou primeiro em
casar-se, com a prévia dispensa de Roma, e, aparentemente, concentrou de imediato
as suas preferências na sua outra sobrinha, a duquesa de Bragança, dona
Catarina, casada com o duque titular. A quem ignorou completamente foi
ao bastardo António, Prior do Crato, com quem as fricções pessoais já
vinham de longe. Todavia, de um ponto de vista prático, o duelo cingia-se ao
rei Filipe e à sua prima Catarina, sendo o primeiro filho de infanta
portuguesa, mas varão, e a segunda filha de infante luso, mas mulher. Quem deveria ter prioridade? O
direito da época não permitia uma decisão irrefutável nessa questão, o que
obrigou o cardeal-rei Henrique a navegar entre dúvidas e pressões diante das
quais o seu único objectivo, como alguns o acusavam, visava sobreviver politicamente
até à sua morte física. Se no começo do seu reinado parece ter simpatizado com
dona Catarina, a rejeição que a casa de Bragança suscitava entre muitos nobres
do reino, devido a ciúmes de linhagem, levou-o a suspender qualquer decisão por
temer desencadear reacções violentas entre os seguidores dos candidatos
derrotados. Entre a restante população, os Bragança, mais do que desprezo, não
suscitavam apoios, o que também esclarece até que ponto a condição de natural
do reino não era decisiva para subir ao trono. A escassa popularidade dos Bragança
gerou um grave problema para o cardeal-rei, quando se apercebeu de que ao duque
não aumentam os amigos com o desfavor
de António, Prior do Crato. Em Janeiro de 1579, Moura informava que o cardeal-rei seguia o conselho daqueles
que lhe propunham não nomear herdeiro em
vida, se a deseja passar descansada, porque se nomeasse a Bragança teria Vossa
Majestade por inimigo, e se declarar Vossa Majestade, o senhor António, Prior
do Crato, e Bragança manifestar-se-ão no país, pelo que será melhor viver
sossegado e depois que se entendam todos. E concluía: Este conselho bem pode ser saudável para o corpo; não sei se o será
tanto para a alma.
Ainda
que a exposição dos factos fosse digna de crédito, a censura ao monarca por não
cumprir as suas obrigações morais, pelo contrário, não era aceitável. Na
realidade, a aparente indeterminação do cardeal rei Henrique derivava precisamente
do seu alto sentido de responsabilidade política que o destino, não a sua
escolha, lançara sobre a sua pessoa. Eclesiástico severo e imbuído do espírito
de Trento, inquisidor-geral e príncipe da Igreja, o cardeal-rei Henrique
empreendera a sua cruzada política particular após a morte do seu sobrinho
Sebastião I, através de uma purga da corte plena de visitas e cárcere que
deixara vítimas no curto caminho percorrido desde Agosto de 1578. A mudança de regime tirou partido
do desastre em África para justificar os castigos, de modo que muitos daqueles
que foram acusados precisavam apenas de uma decisão inoportuna do monarca para
se lançarem na desestabilização de uma arena política já bastante instável (o
rei vai-se tornando muito mal querido porque são muitos os que castiga e a
ninguém faz mercê, e tudo isto redunda em benefício de Vossa Majestade, porque
se vos oferece matéria para cativar esta gente, favorecendo-a nos seus trabalhos,
in Codoin, Lisboa, 18 de Janeiro de 1579; também Roiz Soares, no seu Memorial,
fala da queda deste bando dos Silvas e Távoras, que no tal tempo eram os
cônsules de tudo; outro grande prejudicado foi Pedro Alcáçova, homem-chave no
governo sebastianista que sofreu um processo e o desterro de Lisboa). Face à
polarização a que chegara o debate dinástico em 1579, só um cego não teria visto que nenhum dos candidatos que o
rei escolhesse conseguiria evitar o eclodir do banditismo político em Portugal
e talvez a fractura civil do reino. Em Janeiro de 1580, ainda em vida do cardeal-rei Henrique, Filipe II ordenou ao
duque de Medina Sidónia que fizesse chegar a Bragança como em segredo e por via de advertência aos seus principais criados e
amigos, que lhe convém a vida em que o rei de Portugal não se pronuncie em seu favor,
porque teria guerra em casa e isso seria a causa da ruína naquele reino e,
consequentemente, da sua posição, e que o que mais lhe convém seria tratar das
suas coisas antes da sentença, porque podeis ter por certo que terei para com
ele muita indulgência por evitar a ocasião de ruptura. Não era, portanto, violência
e ameaças o que faltava em Portugal nos começos de 1580. Ao optar por deixar a solução nas mãos das Cortes ou, na sua
falta, de um congresso de juristas também emanado da assembleia, a hipótese
mais razoável consiste em pensar que o cardeal-rei tratou de conter o perigo de
uma guerra civil do modo mais institucional e responsável que pôde, ou que
soube». In Rafael Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência
Militar e Comunidade Política em Portugal, tradução de Manuel Marques, Texto
Editores, Alfragide, 2010, ISBN 978-972-47-4111-6.
Cortesia
de TextoEdit/JDACT