terça-feira, 28 de julho de 2015

A Rosa do Povo. Poesia. Carlos D. Andrade. «A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são. O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não tem importância»

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Consideração do Poema
«Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amaradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus,
Maiacovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizrt de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é mais do que ela. É qualquer homem.
ao meio dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
Há mortos? Há mercados? Há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas
principiantes rugas!
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, e peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
os últimos! Esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te invadindo.

Como fugir ao mínimo objecto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casas,
como orvalho entre dedos
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa».
Poema de Carlos Drummond de Andrade, in ‘A Rosa do Povo

In Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, Livraria José Olympo Editora, São Paulo, 1945.

Cortesia de LJoséOlympio/JDACT