Se isto é um homem
[…]
«Meditai que isto aconteceu:
recomendo-vos estas palavras,
esculpi-as no vosso coração
estando em casa andando pela rua,
ao deitar-vos e ao levantar-vos;
repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos
virem a cara»
«(…) Mas não gosta de
falar: ninguém aqui gosta de falar. Somos novos, não temos nada e não sabemos
nada; para quê perder tempo connosco? Explica-nos contrariado que todos os
outros se encontram a trabalhar e voltarão à noite. Ele saiu hoje de manhã da
enfermaria; por hoje, está dispensado do trabalho. Perguntei-lhe (com uma
ingenuidade que poucos dias depois já devia parecer-me fabulosa) se nos iam devolver
pelo menos as escovas de dentes; ele não riu, mas, com uma expressão de extremo
desprezo no rosto, disse-me: Vous n’étes pas à la maison. E é este o
refrão que ouvimos repetir por toda a gente: já não estão nas vossas casas,
isto não é um sanatório, daqui não se sai a não ser pela chaminé (que é que isto significa? Iremos aprendê-lo
bem mais tarde). E assim é: empurrado pela sede, descobri, no lado de fora de
uma janela, um belo pedaço de gelo ao meu alcance. Abri a janela, arranquei o
pedaço de gelo, mas imediatamente avançou um matulão que andava lá fora e mo
tirou brutalmente. Warum?, perguntei-lhe
no meu pobre alemão. Hier ist kein warum
(aqui não há porquês), respondeu-me, empurrando-me para dentro à força. A
explicação é repugnante mas simples; neste lugar, tudo é proibido, não por
razões obscuras, mas porque o campo foi criado para tal. Se quisermos viver
nele, temos de o perceber rapidamente e bem. ... O Santo Vulto aqui não vês, nem
como em Serchio se toma aqui banho! (Divina
Comédia)
Hora após hora, este primeiro
longuíssimo dia no vestíbulo do Inferno está a terminar. Enquanto o Sol se põe
num vórtice de sinistras nuvens sanguíneas, mandam-nos finalmente sair da barraca.
Vão dar- nos água para beber?
Não, dispõem-nos mais uma vez em filas, levam-nos para uma ampla parada que
ocupa o centro do campo e mandam-nos formar meticulosamente. Depois, não
acontece mais nada durante mais de uma hora: parece que estamos à espera de
alguém. Uma fanfarra começa a tocar, junto à porta do campo: toca Rosamunda, a bem conhecida cantiga
sentimental, e isto parece-nos tão estranho que nos olhamos uns aos outros,
sorrindo; nasce dentro de nós uma sombra de alívio, talvez todas estas
cerimónias mais não sejam do que uma colossal farsa de gosto teutónico. Mas a
fanfarra, depois de Rosamunda,
continua a tocar outras marchas, umas atrás das outras, e então aparecem os
grupos dos nossos companheiros, que regressam do trabalho. Avançam em colunas
de cinco; avançam com um passo estranho, não natural, duro, como fantoches
rígidos, feitos apenas de ossos: mas avançam acompanhando escrupulosamente o compasso
da fanfarra.
Também eles se dispõem
como nós, segundo uma ordem minuciosa, na ampla parada; uma vez entrado o
último grupo, contam-nos e voltam a contar-nos durante mais de uma hora e efectuam
demorados controlos que parecem ser dirigidos por um tipo com a farda às
riscas, o qual presta contas a um pequeno grupo de SS armado até aos dentes. Finalmente
(já é de noite, mas o campo está fortemente iluminado por faróis e holofotes),
sente-se gritar Absperre!, e então
todas as esquadras destroçam num vaivém confuso e turbulento. Agora, já não se
deslocam rígidos e empertigados como dantes: cada um arrasta-se com esforço
evidente. Noto que todos trazem na mão ou pendurada no cinto uma marmita de
chapa de ferro quase tão grande como uma bacia. Também nós, recém-chegados,
vagueamos entre a multidão, à procura de uma voz, de um rosto amigo, de um
guia. Encostados à parede de madeira de uma barraca estão dois rapazes sentados
no chão: parecem muito novos, dezasseis anos no máximo, ambos com o rosto e as mãos
sujos de fuligem. Um deles, ao passarmos, chama-me e faz-me em alemão algumas
perguntas que não percebo; depois pergunta-me de onde vimos. Italien, respondo;
queria perguntar-lhe muitas coisas, mas o meu vocabulário alemão é muito
limitado. És judeu?,
pergunto-lhe. Sou judeu polaco. Há quanto tempo estás num Lager? Há três anos, e
levanta três dedos. Deve ter entrado criança, penso horrorizado; pelo menos, isto
significa que há quem consiga sobreviver aqui. Qual é o teu trabalho? Schlosser,
responde. Não percebo; Eisen; Feuer (ferro, fogo) insiste ele, e acena
com as mãos como quem bate com o martelo numa bigorna. É um ferreiro, portanto.
Ich Chemiker, declaro eu; e ele acena
gravemente com a cabeça: Chemiker gut.
Mas tudo isto tem a ver com o futuro longínquo: o que me atormenta, neste
momento, é a sede.
Beber, água. Nós nada água, digo-lhe. Olha para mim com o rosto sério,
quase severo, e diz pausadamente: Não bebas água, camarada, e a seguir outras
palavras que não percebo. Warum?
Geschwollen, responde telegraficamente:
abano a cabeça, não percebi. Inchado, dá-me a entender, inchando as bochechas e
representando com as mãos uma monstruosa tumescência do rosto e da barriga. Warten bis heute abend. (Esperar até
hoje noite) traduzo eu palavra por palavra. Depois diz-me: Ich Schlome, Du? Digo-lhe o meu nome, e ele perguntou: Onde a tua
mãe?' Em Itália. Schlome fica surpreendido. Judia na Itália? Sim, explico como
melhor sei, escondida, ninguém conhece, fugir, não falar, ninguém ver. Percebeu;
agora levanta-se, aproxima-se e abraça-me timidamente. A aventura terminou,
sinto-me invadido por uma tristeza serena que é quase alegria. Nunca mais
voltei a ver Schlome, mas não esqueci o seu rosto sério e bondoso de criança,
que me acolheu à porta da casa dos mortos». In Primo Levi, Se Questo è um
Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta
Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.
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