Se isto é um homem
«Vós que viveis tranquilos
nas vossas casas aquecidas,
vós que encontrais regressando à noite
comida quente e rostos amigos:
considerai se isto é um homem
quem trabalha na lama
quem não conhece paz
quem luta por meio pão
quem morre por um sim ou por um não».
[…]
No Fundo
«(…) Sabemos que, quanto a isto, dificilmente nos compreenderão, e é bom
que assim seja. Mas considere cada um quanto valor quanto significado está
contido mesmo nos nossos mais pequenos hábitos quotidianos, nos nossos mil
objectos que até o mendigo mais humilde possui: um lenço, uma velha carta, a fotografia
de uma pessoa amada. Estas coisas fazem parte de nós, quase como se fossem
membros do nosso corpo; não podemos sequer pensar em sermos privados delas, no
nosso mundo, pois imediatamente encontraríamos outras para substituir as
velhas, outros objectos que são nossos porquanto guardam e suscitam memórias
nossas. Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas,
tiram a casa, os hábitos, a roupa, enfim, tudo, literalmente tudo quanto
possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à carência, esquecido da
dignidade e bom senso, pois acontece facilmente, a quem tudo perdeu, perder-se
a si próprio; reduzido a tal ponto, que outros poderão sem problemas de
consciência decidir da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentido
de afinidade humana; no caso mais optimista, na base de uma mera avaliação de utilidade.
Compreender-se é então o duplo significado da expressão campo de extermínio, e será claro o que entendemos exprimir
com esta frase: jazer no fundo.
Haftling: aprendi que sou um Haftling. O meu nome é 174 517; fomos
baptizados, guardaremos até à morte a marca tatuada no braço esquerdo. A
operação foi levemente dolorosa e extraordinariamente rápida: puseram-nos todos
em fila e, um a um, pela ordem alfabética dos nossos nomes, passámos diante de
um hábil funcionário munido de uma espécie de punção com a agulha muito curta.
Ao que parece, é esta a verdadeira iniciação: só mostrando o número se recebem o pão e a sopa. Foram precisos
vários dias, e não poucos socos e bofetadas, para que nos habituássemos a
mostrar o número prontamente, de forma a não atrapalhar as operações diárias de
distribuição da comida; foram precisos semanas e meses para que aprendêssemos o
som em língua alemã. E durante muitos dias, sempre que o hábito dos dias livres
me levava a procurar as horas no relógio de pulso, no seu lugar aparecia-me
ironicamente o meu novo nome, o número bordado em sinais azulados debaixo da epiderme.
Só muito mais tarde, e pouco a pouco, alguns de nós acabaram por aprender
algo da funesta ciência dos números de Auschwitz, em que se compendiam as
etapas da destruição do judaísmo da Europa. Aos velhos do campo, o número diz tudo:
a época de entrada no campo, o comboio de que se fazia parte e, por
consequência, a nacionalidade. Cada um tratará com respeito os números de 30
000 a 80 000: já só restam algumas centenas, e indicam os poucos sobreviventes
dos guetos polacos. Convém abrir bem os olhos quando se entra em relações comerciais
com um 116 000 ou um 117 000: estão reduzidos a cerca de quarenta, mas trata-se
dos gregos de Salonica, é preciso não se deixar enganar. Quanto aos números
altos, contêm uma nota essencialmente cómica, como acontece com as expressões caloiro ou recruta na vida normal: o número alto típico é um indivíduo pançudo,
dócil e ingénuo ao qual podes fazer acreditar que na enfermaria distribuem
sapatos de couro para indivíduos de pés delicados, convencendo-o a correr até
lá, deixando a sua marmita de sopa à tua
guarda; podes vender-lhe uma colher por três rações; podes mandá-lo ter com
o mais feroz dos Kapos, para lhe perguntar (aconteceu-me a mim!) se é
verdade que o dele é o Kartoffelschalkonmando, o Kommando
Descasca-Batatas, e se é possível alistar-se.
De resto, todo o processo de integração nesta ordem nova para nós
realiza-se numa chave grotesca e sarcástica. Uma vez acabada a operação de tatuagem,
fecham-nos numa barraca onde não está ninguém. As camas em beliche estão
arrumadas, mas estamos severamente proibidos de mexer nelas e de nos sentarmos,
pelo que nos movimentamos sem destino durante metade do dia no escasso espaço disponível,
ainda atormentados pela sede furiosa da viagem. Depois, a porta abre-se, entra um
rapaz com a farda às riscas, com um ar bastante civilizado, pequeno, magro e louro.
Fala francês, e muitos de nós caímos-lhe em cima, bombardeando-o com todas as perguntas
que até agora trocámos uns com os outros inutilmente». In Primo Levi, Se Questo è um
Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta
Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.
Em memória do Fernando José. Que estejas em paz.
Cortesia de Teorema/JDACT