«(…) Mas, caramba, Ferdinando, disse-me a tia Carolina, que também o
seria de Cados, se Carlos não fosse filho de quem é, não compreendes que ele
nunca te perdoará o facto de teres a figura que tens e de as pessoas o saberem?
Devias ter-te torcido um pouco e posto essa cara de tonto que toda a gente te
atribui. A tia Carolina sempre me quis bem e, quando me expulsaram do país,
mandou-me recado dizendo que, até encontrar melhor acomodação, podia
refugiar-me na sua villa da Riviera.
Por sorte, o que me oferecia Christian ficava muito mais perto e eu estava mal
de dinheiro na altura da fuga, para me poder ir meter com dignidade de vencido
em assuntos de viagens para tão longe. Pois o que aconteceu foi que Carlos Guilherme
começou a mandar-me recados e bilhetes diplomáticos para eu fazer isto e
aquilo. A gente do meu país tem pernas para andar e não é preciso governá-la,
mas Carlos Guilherme queria fazê-lo mesmo antes de nos invadir, ainda que por
grão-duque interposto. Estava bem informado, metia-se em tudo mas, como no meu
país nunca acontecia nada, ele inventava perigos e avisava-me contra esta ou
aquela conspiração, este ou aquele grupo suspeito, esta ou aquela sociedade
secreta que nunca estavam contra mim, mas sim contra ele e o seu reino,
promovidos, protegidos e pagos pela Inglaterra. Manteve-me assim, sob vigilância,
durante vários anos, ainda que o acossassem pessoas e questões mais importantes
do que eu e o meu país e se, por fim, se decidiu a invadir-nos e a pôr-me na rua
(é uma maneira de dizer), foi num momento de descanso, pela conveniência
estética de situar, entre uma operação grandiosa e uma operação ruinosa uma terceira,
delicada e de certo modo elegante: por uma questão de equilíbrio e não se sabe
se, também, de harmonia. Limitou-se a enviar-me um correio pessoal com o
seguinte bilhete: às nove da manhã do dia
tal (que era amanhã), cem homens do meu exército entrarão no teu ducado e
tomarão posse dele em nome do meu império e em virtude da minha indiscutível
vontade. Como receberás este bilhete na própria tarde do dia anterior, tens tempo
de preparar a bagagem e de tomar um barco que te leve para fora do país. Deixa
ficar a tua filha Rosanna porque, como comandante desses cem homens, irá o
nosso primo segundo Raniero, que vai casar com ela porque deseja ser grão-duque
consorte e comandante honorário dos teus cinquenta soldados. Podes levar os
teus objectos pessoais. Como tenho um inventário completo dos quadros e das jóias
que o castelo contém, se faltar alguma coisa, a minha justiça recuperá-la-á nem
que te escondas debaixo dos Alpes. Não te preocupes com a tua reputação: não
interessa ao teu povo e, para tranquilizar as potências, os meus juristas têm
preparada uma impecável justificação, e um filósofo a sua, mais transcendente.
Boa sorte.
Do que o meu primo não me advertiu foi de que Raniero violaria Rosanna
sem chegar a tirar as esporas, antes de fazê-la sua esposa à força. O
mensageiro ofereceu-me, quando acabei de ler a carta, o inventário dos objectos
do meu palácio. Tenho ordem para lho entregar, no caso de necessitar consultá-lo.
A verdade é que quase não me dava tempo para averiguar que coisas eram minhas e
quais não. A minha roupa, claro, a minha navalha da barba, os retratos da minha
falecida mulher e talvez alguma bengala. Ah, e a correspondência! A correspondência
não figurava no inventário. Alguns anos antes, Carlos Guilherme tinha-me
obrigado a mandar a policia copiar todas
as cartas que entravam ou saiam do ducado, o que me obrigou a duplicar o
pessoal e a pagar-lhe: uma ruína! Ocorreu-me, contudo, que, já que era
eu a pagar, se fizessem duas cópias: uma, a que exigia o meu primo e, a outra,
para mim: um capricho que me permitiu conhecer a destempo e sem remédio já,
os amores de Amélia com Franz Liszt, um músico genial!, e não com esse
prepotente do Bismark de quem se falou. Creio que, durante os vinte ou vinte e
cinco anos que durou a violação policial da correspondência nacional, não
passaram de três as cartas que poderiam interessar a Carlos Guilherme. Ignoro o
que fez com as outras. Eu arquivei e classifiquei todas; algumas, como seria de
prever, li-as. Primeiro, enquanto fui grão-duque porque, quando à tarde me
deixavam sozinho, me aborrecia; depois, no desterro porque, ao lê-las, me
parecia reviver acontecimentos esquecidos e conhecer pessoas desconhecidas.
Essas cartas são milhares. Contêm uma infinidade de histórias. Ainda que
segregasse o montão das comerciais e triviais, com o restante teria com que compilar
vinte ou trinta volumes de grande formato e letra pequena. Não rejeito a ideia
de as ordenar, de modo a que essas histórias, agora um caos, se organizem; e de
as publicar depois, mas seria preciso viver muitos anos e ter muito dinheiro, e
sei que não o terei nunca». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos,
A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha,
1995, ISBN 972-29-0326-8.
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