A casinha do bosque
«(…) Mandava o protocolo que três pancadas de alabarda deviam preceder
o Rei na sua saída, e de facto eram dadas com tal veemência que os espectadores
não habituados esperavam da aparição real uma solenidade equivalente. Ficavam, não
obstante, um pouco defraudados, pois embora o mestre-de-cerimónias, o primeiro
a desfilar, superasse pela marcialidade e pela ostentação as mais altas esperanças,
a figura do Rei, que o seguia, ficava abaixo das mais modestas. O mestre-de-cerimónias,
luxuoso de ouros em cordões, dragonas e cruzes, avançava distante e esticado,
como um Faraó, moderado no andar, embora bamboleando-se um pouco; de olhar invariavelmente
fixo num ponto inacessível do espaço, dando ao bastão um gracioso meneio. O Rei,
pelo corurário, caminhava nervoso e a passos rápidos, quase pernadas; as suas costas
curvavam-se mais do que seria tolerável num hornem da sua idade, e vestia um
conjunto de casaco desportivo e calças de estambre cinzento: elegante para
qualquer um, mas impróprio de um rei tão rei como Canuto. Quanto ao seu olhar,
parecia mais absorto no seu íntimo, como ensimesmado ou introvertido. Os espectadores
mais ingénuos costumavam dizer que parecia mais rei o mestre-de-cerirnónias do que
o monarca.
O qual, no entanto, era simpático de aspecto e atraente de figura,
embora talvez estivesse no seu atractivo e na sua smplicidade a origern da
falta de respeito a um monarca em que incorriam os seus súbditos ao vê-lo;
talvez por acharem que a pessoa de um monarca, mesmo de um monarca
constitucional e democrático, deve ser hierática e heróica; mais rígida que
flexível; com uma ponta de mistério, e um lábio belfo, se for caso disso, em
que seja patente a crueldade transmitida por tantos antepassados sanguinários
como os de Canuto. E não a de um senhor que mete as mãos nos bolsos e que a
todo o momento se mostra incapaz de dominar a madeixa ruiva do cabelo caído
para a testa. Eram estes, pelo menos, os termos em que a oposição republicana
desacreditava a parte mais visível do monarca, esquecendo-se de que cem anos
antes os avós de Canuto tinham sido combatidos por conservarem integralmente e
em excelente estado as qualidades cuja ausência se deplorava no neto.
Dá-se o caso de que o palácio real era habitado por várias centenas de
pessoas com marcado aspecto régio, como generais e camareiros, lacaios e
alabardeiros, e a qualquer um deles assentaria melhor a coroa do que ao seu
proprietário por direito; mas dava-se além disso a circunstãncia de que a maior
parte dos generais e camareiros e ainda dos alabardeiros e lacaios tinham em
privado essa opinião e consideravam-se mais aptos para a função real do que
Canuto, o qual, no cúmulo da humildade, tinha chegado a coincidir com eles no mesmo
pensamento e, se não lhes beijava a mão, admirado pela sua majestade e
arrogância, era pelo costume de que fosse a sua mão a beijada.
Como em boa medida é Canuto o protagonista desta história, será oportuno
fazer dele mais vasta referência, ainda que elaborada com base em alguns
relatórios diplomáticos, sempre parciais e subjectivos e por vezes satíricos;
mas, no caso de Canuto, qualquer que seia o grau de parcialidade ou de ironia,
sempre lhe serão mais favoráveis do que a imprensa nacional, que parece ter-se
aproveitado da liberdade apenas para troçar abertamente do monarca. Em última
análise, há dados rigorosamente objectivos aos quais nos podemos ater, embora
sejam escassos e se limitem a pouco mais do que a inscrição no Registo Civil.
Segundo eles, Canuto tem actualmente vinte e oito anos e é filho do
defunto Wenceslao e da sua esposa, a rainha Aurelia, tarnbém defunta. Do
Registo constam também os nomes dos avós, mas, por serem do domínio público,
pasamo-los em silêncio, embora convenha aproveitar a ocasião para contrariar
certo boato que corria em meados do século XIX, segundo o qual Wenceslao não
era filho do rei Roberto, mas de um belo general, vitorioso nas guerras da Trigónia,
por quem a rainha se apaixonara. Calúrnia lamentável, porque não houve no mundo
nada mais parecido com a acromegalia de Roberto que a do seu filho Wenceslao. Em
seu devido tempo, os médicos mais reputados emitiram um longo relatório sobre a
questão, e embora o parecer não tenha sido do domínio público, os chefes dos
partidos, incluindo o leader
republicano, tiveram oportuno conhecirnento e aceitaram Wenceslao como legítirno
herdeiro da coroa, embora alguns deles se obstinassem em fazer reparos à coroa
como instituição, ainda que não como jóia de valor arqueológico». In
Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial
Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.
Cortesia de Caminho/JDACT