Uma
cabeça interessantíssima
«Schopenhauer estava furioso. Tinha
encenado uma dança frenética. No final, na malandrice, os dois tipógrafos troçaram
dele e, com as mãos encardidas de preto, fizeram-lhe uma careta. Saiu de casa do
editor e desatou a correr, sem destino, o doutor de Filosofia, qual bola incandescente
a deitar fagulhas pelo caminho. Era desesperante. Trabalhara todo o verão nas provas
do manuscrito, como um escritor esfomeado, para que o prazo fosse cumprido. O editor
tentara desenvencilhar-se, iludindo-o durante muito tempo, para, no fim, atribuir
toda a culpa à tipografia. Schopenhauer arrastava-se e praguejava em volta das
bancadas que estavam montadas desde manhã: estruturas instáveis, construídas à pressa,
cobertas com lona. Carretos de duas rodas e trenós com patins de ferro rolavam sobre
o pavimento; carregadores, carroceiros, carpinteiros, berravam atropelando-se
uns aos outros, acompanhados das marteladas e do ruído das serras no meio da gritaria
dos vendedores de mercado e dos seus ajudantes, que tentavam pôr um pouco de ordem
naquele caos.
Um farrapo colou-se à sua bota. Schopenhauer
começou a bater com os pés no chão; como se estivesse a pisar um adversário
invisível. Tirou finalmente o trapo com a mão e atirou-o para o chão. Alguns dos
artesãos baixaram as suas ferramentas e observavam o espectáculo com interesse.
Ser o alvo das atenções causava-lhe mal-estar .Chega, pensou ele, já chega. Um relógio bateu as nove, dez,
onze e, seguiram-se as três batidas fracas do quarto de hora. Meio-dia menos um
quarto. Saiu a correr para a rua que ia dar directamente à Estação Principal dos
Correios de Leipzig, deixando a confusão das bancadas do mercado para trás. Com
alguma sorte, conseguiria escapar antes das doze batidas àquela cidade que de uma
hora para a outra se tornava cada vez mais apertada e barulhenta. Como seria dali
a uns dias, quando as bancadas estivessem todas abastecidas e entre elas começassem
a mover-se, numa grande agitação, clientes, vendedores, curiosos, músicos, pedintes
e comerciantes ambulantes de quinquilharia?
Aqui, arrancava-se um dente a um lavrador;
ali, na tenda das aberrações, filhas de burgueses estremeciam com a visão de bebés
deformados, imóveis, imersos em frascos de vidro. Salsicha grelhada, teatro de fantoches,
circo de macacos, pulgas e cães para a plebe, um concerto no armazém de fazendas,
um banquete no Alippi ou no Primavesi para os mais abastados. Nas despensas e no
pátio do mercado, os artigos amontoavam-se em grandes pilhas: rolos de tecido, produtos
de tabacaria, seda, couro, inutilidades, olaria, porcelana, partituras, artesanato
e quadros, relógios, ferramentas, máquinas, lã e algodão, sapatos, chapéus, calças,
casacos, sobretudos, vestidos, luvas, metais e medicamentos, vidros e cristais,
papéis, máquinas impressoras e tintas de impressão, chumbos de tipografia e livros,
livros, livros. Só o seu é que não.
Schopenhauer agitava-se por entre
caixotes empilhados e um carro de bois, passou pelo Naschmarkt, que também era
a despensa de Auerbach, de onde saíam silhuetas a piscar alegremente os olhos e
a tatear na luz. Partiu uns dias antes, às quatro e meia da manhã, conseguiu ainda
apanhar a primeira carruagem do correio, na qual chegou a Leipzig às duas horas
da manhã. O resto da noite passou-a estirado num banco na estação dos correios.
Os hotéis nas redondezas estavam cheios e ele demasiado cansado para ir à procura
de uma estalagem. De qualquer modo, tinha ainda por companhia um boi e um burro,
dois vendedores ambulantes malcheirosos e flatulentos que dormiam dobrados sobre
os seus tabuleiros na outra extremidade da sala. Três horas depois, saíam os dois
da sala fazendo uma grande barulheira; Schopenhauer seguiu-os imediatamente. Na
taberna ao lado, bebeu um café fraco e comeu dois pãezinhos que ainda fumegavam
quando ele os abriu e os pingou com uma compota escura.
O editor devia ter entrado no seu
escritório por uma porta traseira; Schopenhauer esperara na porta da frente desde
que a madrugada rompera. Uma palavra, só teria precisado de uma única palavra dele,
mas os tipógrafos instruídos para o acalmarem não o largaram de vista, nem por nada,
desde que ele começara a bater nos caixotes e a gritar irado com o editor dizendo-lhe
que devia, por gentileza, cumprir com a sua parte do contrato, tal como ele o fizera.
O cheiro a estrume de cavalo anunciava a estação dos correios. Havia uma canga no
pátio, quatro cavalos exaustos, encharcados de suor. Entrou mais uma carruagem a
ressoar pela porta da cidade. O postilhão produziu um grasno com a corneta e puxou
as rédeas. Seis passageiros desceram um a seguir ao outro, apoiando-se no degrau
com um passo firme.
Schopenhauer
abriu a porta dos correios com um empurrão. Na outra extremidade da sala baixa com
abóbadas apoiadas em colunas imponentes, destacava-se um funcionário por detrás
de um balcão que lhe dava pela altura do peito. Quando parte o próximo correio para
Dresden?, perguntou Schopenhauer. Normal ou urgente? Desculpe? Schopenhauer inclinou-se
para a frente e pôs a mão atrás da orelha esquerda. Voltou imediatamente a tirá-la;
detestava gestos habituais, como se revelassem demasiado sobre a sua pessoa. É
indiferente. O funcionário olhou para o relógio e disse: De acordo com o horário,
daqui a seis horas. Carruagem com regresso, para si, mais cedo. Quatro táleres,
dezoito xelins e nove pfennings, gorjeta
para o postilhão incluída. Aquele ali. Um postilhão provinciano, vestindo
jaquetão amarelo com colarinhos azuis, uns calções de couro que já não eram
brancos e botas altas, estava encostado à parede, a fumar um cachimbo de porcelana,
e acenou obsequiosamente ao seu hipotético passageiro. Tanto?, perguntou Schopenhauer e pensou: é indiferente; só me quero ir embora, sair
daqui». In Christoph Poschenrieder, A Paixão de Schopenhauer, 2010, tradução de
Manuela Ramos, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-637-363-4.
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