domingo, 26 de julho de 2015

As Saias de Elvira e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «A ‘convivência meiga das mulheres’ que envolve Amaro quando acede ao antro maternal da pensão da Senhora Joaneira é um ‘dado’ ou um implícito do mundo afectivo-erótico queirosiano»

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«(…) Ora esse código é, em termos de uso cultural, de prática adorante e de intenção, feminino. Não direi aquilo que pareço querer estar dizendo. O corpo e a tensão erótica que na ficção de Eça são perceptíveis têm a Mulher como princípio, meio e fim. Em vez de cenas da vida real ou da vida romântica, a obra de Eça podia ter como subtítulo Mulheres ou, para não plagiar anacronicamente Philippe Sollers, Muther. O universo inteiro (para Eça) está escrito em catacteres femininos. Não é só Teodoro, Teodoro, que foi educado entre saias como o herói de 8 ½ de Fellini. Foram todos os seus heróis que banharam numa atmosfera intensamente feminina. A convivência meiga das mulheres que envolve Amaro quando acede ao antro maternal da pensão da Senhora Joaneira é um dado ou um implícito do mundo afectivo-erótico queirosiano. Os gritinhos de voluptuoso contentamento com que ilumina as infâncias de Teodoro são os mesmos com que gratifica o mundo feminino em geral e o pseudobeato e provincial do Crime do Padre Amaro. Tudo forma sistema em Eça e será talvez, quando por demais o notamos, o único senão visível do príncipe dos nossos delírios turvos e luminosos, pelo poder sem par que os revelou.
Mas esse banho feminino em que Eça mergulha a vida e a sensibilidade dos seus heróis, ao menos daqueles cujo destino vai ser determinado pelo encontro do efémero divino da Mulher, é também uma cultura precisa, a cultura beata portuguesa, a de todas as Gangozas, de todas as Titis, que não conhece outra saída para a expressão dos afectos senão a linguagem inocentemente erotizada dum cristianismo que é, ao mesmo tempo, de sacristia e de alcova. O rústico padre Amaro é feminizado pelo amor e pelo olhar de Amélia como Amélia é sensibilizada ao divino pelo desejo de Amaro. Nem todas as infâncias desses heróis serão como as de Teodoro, mas obedecem à mesma cultura e relevam do mesmo molde: o de uma exacerbação, de uma acuidade senão em relação aos movimentos do coração ao menos aos das sensações, agudamente lidas, que tanto conforto maternante, inocentemente sensual, fez nascer: Quando recolhíamos ao quarto, alumiados, passou por nós bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e branca, com um rumor forte de sedas claras e espalhando um aroma de almíscar. Era a inglesa do senhor barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando ave-marias. Nunca roçara corpo tão belo, dum perfume tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras.
Teodoro, o herói picaresco da Relíquia tinha sete anos... Freud tirou-nos todas as ilusões acerca da inocência infantil. Mas o que é pouco conforme com ela é que aquelas sensações do precoce Teodoro pudessem inventar para os seus êxtases esta assimilação entre a senhora das sedas claras e a Mãe de Cristo. Todavia o que aqui importa é que Teodoro (mero duplo de Eça) passe no plano simbólico como todos os outros adultos seduzidos pelas Vénus sumptuosas da vida, aquela linha que durante séculos separara o divino do profano, transmutando o primeiro no segundo. António Coimbra Martins, no ensaio que marca data nos estudos queirosianos, debruçou-se com queirosiano espírito sobre o par Eva-Ave que estrutura a dialéctica erótica queirosiana. Não há grande coisa a acrescentar a essa intuição. Só direi que, conservando a verdade dela, a leio introduzindo-lhe uma leve torção interna, uma derrapagem, deslocando-a do seu equilíbrio simbólico e, de algum modo, invertendo o sentido ou, pelo menos, a conclusão do jogo e do drama que aí se joga. Como o meu tema se centra em Eros e Eça, tudo parecerá desequilibrado pela intensidade da sua presença na ficção do romancista, podendo parecer a intrusão do outro tema, o de Maria, um mero expediente de dramaturgo para conferir mais interesse a um cenário, onde só Eros realmente domina. Na verdade, se há desequilíbrio na grande tapeçaria que Eça consagrou às mil miragens com que Eros ocupa a nossa imaginação e condiciona o nosso destino é a favor do que parece menos ofuscante, embora o seja muito. Do lado da Mater, menos gloriosa que dolorosa, do lado do Filho, crucificado na cruz do Desejo que é a marca sensível da nossa condição, mas não a plenitude dela.
O mais erótico dos nossos autores é o único que entreviu entre os esplendores, os sortilégios, os êxtases, as felicidades sensíveis de que o Desejo se reveste, a dor; a angústia, a tristeza, a miséria, em suma, o oceano não menos inesgotável que o da sensualidade e sua ofuscação, o das lágrimas d’Eros. E é nas intencionalmente mais sacrílegas ou profanadoras expressões da sua ficção, nas mais cínicas ou chocarreiras, que a encontramos, como na Relíquia, embora essa presença esteja em toda a parte, o traço indelével dessa face trágica de Eros». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT