O Comércio do Invisível
«(…) Fazia-se donzela acabada de sair da primeira idade, mas metia em
tudo uma disposição firme e madura, que tanto lhe subia da natureza arredia
como da imaginação excitada pelo sal das narrativas bíblicas ou populares. Também
a irmã, dona Maria Teles, mais velha, mais estimada, e muito mais requestada do
que ela em meio paceiro, lhe merecia pouco apreço, apesar do carinho que dela
recebia. Estava certa que só enquanto se apagasse, no silêncio da sua capa,
ajudando a irmã a brilhar, o afecto duraria. Era de resto o que sucedia com a
primita, dona Leonor Meneses. Se um dia a irmã levantasse a ponta do seu véu e
percebesse o que ele tapava, moveria com desagrados escandalizados a língua
contra ela. O doesto é quase sempre um prato espontâneo, cozinhado de improviso,
mas que traz no paladar o sabor pensado da vingança. Em virtude de contraste
assim tão marcado, dona Leonor Teles calava e escondia.
Nada dizia ou mostrava de si. O isolamento passou a ser a protecção da
sua dissemelhança. Solidão e silêncio, em vez de castigo, serviam de socorro;
eram duas flores forçadas e amargas, que libertavam porém alívio e conforto no
perfume. Da visão da história da Terra e dos mundos tirava dona Leonor Teles
uma relação extensamente conflituosa com a existência terrena. Possuía uma
memória antiquíssima do plano terrestre e era capaz de distinguir, por entre a
densa névoa de sofrimento em que a Terra mergulhara, o momento glorioso da criação
paradisíaca. De qualquer modo, percebia que essa origem fora subvertida e que a
Terra, pela destruição do seu princípio, se tornara num caos infernal de
confusão. A humanidade, esquecida do seu estado primeiro, passara a viver do
aguilhão dos instintos mais basilares, enovelando-se num enredo de lutas e de
crimes. Era presa duma amnésia e duma inclinação maléfica. Concomitante ao
aviltamento das qualidades do homem e da mulher, estava a degradação da natureza.
Os animais, que haviam vivido outrora no Paraíso numa mansidão sem mancha,
tornaram-se, com excepções pouco frequentes, predadores ferozes e cegos, que
viviam para se devorarem uns aos outros.
Por isso, homens e mulheres emanavam depois da morte corporal aquela bolha
fantasmática, transparente e incolor, que ficava a pairar no oceano invisível
das almas dos defuntos. E por isso ainda, animais e plantas depois de perderem
a sua forma terrena libertavam aquelas emanações invisíveis, ora horrorosas e
repelentes, ora aceitáveis e até simpáticas, que se chamavam elfos, fadas, génios,
monstros e orcos. Não podia dona Leonor Teles conviver serenamente com um mundo
assim constituído. Aquilo que mais lhe inspirava aversão eram certos fantasmas
humanos que flutuavam na atmosfera das almas mortas. Logo a seguir, na escala
do seu pavor, vinham os monstros disformes e os orcos, que eram o resultado das
emanações fétidas das feras terrestres que haviam passado a vida a rosnar e a
beber o sangue das suas congéneres. Havia depois os elfos, os duendes, as fadas
e os génios que eram volatizações próprias aos seres mais pacíficos e
misteriosos da natureza, sobretudo aqueles que abriam em caprichosas e olorosas
flores, vivendo uma vida de silêncio, quietude, cor e beleza. Havia ainda
certos animais que emanavam seres invisíveis atractivos, dignos de benquerença.
Estavam nesse caso os que se alimentavam apenas de ervas, sementes ou frutos, e
ainda outros que viviam, fechados na sua casca, quase sem contacto com o
exterior e quase sem necessidade de alimento. Ainda assim, todo este conjunto
de seres invisíveis benéficos vivia uma vida oculta e fugitiva, acossada em
permanência pelos grandes monstros e os desproporcionados orcos». In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT