Cruzando
o Mar Estreito. Putney, 1500
«(…)
Sente-se. Não fale, pede Kat. Quando chega a bacia, ela se inclina sobre ele e
põe mãos à obra, limpando o olho fechado, fazendo pequenos círculos
ininterruptos pela linha dos cabelos. Sua respiração é entrecortada e a mão
livre repousa sobre o ombro do irmão. Kat pragueja entre dentes, às vezes chora
e afaga a nuca do irmão, sussurrando Calma,
quietinho, calma, como se fosse ele quem estivesse chorando, o que não é o
caso. É como se estivesse flutuando e Kat o prendesse à terra; ele gostaria de
jogar os braços em torno da irmã, enterrar o rosto em seu avental e ali
descansar, ouvindo as batidas do coração dela. Mas não quer sujá-la, espalhar
sangue por toda a roupa. Morgan Williams chega, usando seu elegante casaco de
passeio. Ele tem uma aparência galesa e combativa; fica claro que já ouviu o
que aconteceu. Vai para junto de Kat, olhos baixos, temporariamente sem
palavras, até que diz: Está vendo? Ele fecha a mão e levanta o punho três vezes
no ar. Isso aqui!, exclama. Isso é o que ele levaria. Walter. Isso é o que ele levaria.
De mim. Chegue para trás, Kat adverte. Você não vai querer pedacinhos de Thomas
no seu paletó de Londres.
Não mesmo; Morgan recua. Eu não
me daria ao trabalho, mas olhe para você, rapaz! Numa luta justa, você poderia
aleijar aquele animal. Nunca é uma luta justa, explica Kat. Ele chega pelas
costas, não é, Thomas? Com algo na mão. Desta vez, parece que foi uma garrafa
de vidro, diz Morgan Williams. Foi uma garrafa? Ele balança a cabeça, negando.
O nariz sangra novamente. Não faça isso, irmão, diz Kat, com sangue cobrindo
sua mão. Ela limpa os coágulos na própria roupa. Que sujeira no avental dela;
no fim das contas, ele poderia, sim, ter descansado a cabeça ali. Você não
chegou a ver, não é?, diz Morgan. O que exactamente ele usou? Mas que grande
fiasco você é para a bancada dos magistrados... Essa é a vantagem de um ataque
pelas costas!, comenta Kat. Escute, Morgan, você quer que eu diga como é meu
pai? Ele pega qualquer coisa que tenha à mão. E, claro, às vezes é uma garrafa.
Eu via quando ele fazia isso com a minha mãe. Até nossa pequena Bet, já vi meu
pai acertando a cabeça dela. E quando não o via começar uma agressão, o que é
pior, significava que quem estava prestes a ser derrubada era eu. Não sei que
família é essa em que me meti quando me casei..., pondera Morgan Williams. O
que na verdade é algo que Morgan diz apenas da boca para fora; tem homens que
cospem o tempo todo, tem mulheres que vivem com dor de cabeça: Morgan faz essas
indagações. O garoto não o escuta. Ele pensa: se meu pai fazia isso com minha mãe,
morta há tanto tempo, quem sabe se não foi ele quem a matou? Não, Walter
certamente seria preso por isso; Putney é uma terra sem lei, mas aqui não se
escapa incólume de um assassinato. Kat é a mãe que ele tem: é quem chora por
ele, quem lhe afaga a nuca. Ele fecha os olhos, para igualar o olho esquerdo ao
direito; e tenta abrir os dois.
Kat,
eu ainda tenho um olho aqui em baixo, não tenho? Porque não vejo nada com ele. Sim,
sim, sim, ela responde, enquanto Morgan Williams continua sua investigação dos
factos; ele conclui que foi usado um objecto duro, moderadamente pesado,
cortante, mas talvez não uma garrafa quebrada, senão Thomas teria visto as
bordas lascadas antes que Walter rasgasse sua sobrancelha e tentasse cegá-lo. O
menino ouve Morgan elaborando sua teoria e gostaria de explicar sobre a bota, o
nó, o nó no fio de cadarço, mas o esforço de mover a boca parece
desproporcional à recompensa. No geral, ele concorda com a conclusão de Morgan;
ele tenta dar de ombros, mas dói demais, e ele se sente tão esmagado e torcido
que teme ter quebrado o pescoço. De todo modo, pergunta Kat, o que você estava
fazendo, Tom, para irritá-lo? Geralmente, quando não tem motivo, Walter só começa
depois que anoitece. Sim, concorda Morgan Williams, houve um motivo? Ontem. Eu
estive brigando. Você brigou ontem? Em nome de Deus, com quem você andou brigando?
Não sei. O nome e o motivo fugiram de sua cabeça; mas é como se, ao sair, tivessem
levado consigo uma lasca de osso do crânio. Ele toca o couro cabeludo,
cuidadosamente. Garrafa? É possível». In Hilary Mantel, Wolf Hall, 2009, Editora
Record, tradução de Heloisa Mourão, 2011, ISBN 978-850-109-768-2.
Cortesia
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