domingo, 31 de dezembro de 2023

No 31. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Não quereis tomar um pouco de trabalho e ir ver uma notável antiguidade que fica não muito desviada do caminho que levamos? E que antiguidade era essa? O labirinto do Minotauro. O labirinto!»

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O Breviário

«A jornada, porém, correu pacifica e com grande contentamento chegámos antes do sol-posto ao mosteiro dos caloiros, a um tiro de pedra do qual nos saiu a receber o abade rodeado de alguns dos religiosos. Com muita humildade se lançou a nossos pés pedindo-nos a bênção, como é seu costume quando se encontram com outros religiosos. Fizemos nós o mesmo pedindo-lhe a sua e abraçámo-nos uns aos outros e beijámo-nos na face, por se usar naquelas partes e em todo o Oriente, ao modo italiano. Levaram-nos, de seguida, à igreja a fazer oração. Noto então que, por distracção ou troca inconsciente, tinha trazido um breviário que não é o meu. Acabada a oração, levam-nos a uma casa a modo de hospedaria, onde os têm preparada colação com muitas tâmaras, grãos tostados e outras coisas à maneira da terra. Vendo-me em tão caritativo convite, achei ser essa uma óptima ocasião para oferecer ao abade e aos caloiros uma caixa de marmelada. Tinha-a comprado, com outra provisão, em Veneza e trazia--a metida na manga, por assim me haverem aconselhado na nau: que não fosse de mãos abanar. Provam-na, que delícia!, tornam a provar: Nunca naquelas grecianas partes, fra Pantaleone, se vira tão delicada iguaria!

Levam-nos em seguida ao pomar do mosteiro que é muito viçoso de fruta de espinho de toda a sorte, ponteando seus pomos de ouro no verde da folhagem, com cuja vista e perfume nos recriamos e tomamos alento do passado enfadamento do mar. Tornados ao mosteiro, encaminham-nos para um grande refeitório, em que haviam acendido um acolhedor fogo para quebrar o frio que, com o cair da noite, se começa a sentir.

À nossa espera uma esplêndida ceia! Sendo pobres, sua caridade não permite enxergar-se neles pobreza para connosco. À nossa mesa se senta o abade com dois caloiros velhos. Teve o cuidado, pois era Advento e sabia que, conforme nossa regra, nos guardamos nesta altura de comer carne, de mandar fazer provisão de pescado. De toda a maneira guisado nos é posto diante com as mais variadas achegas de manjares quaresmais. Numa outra mesa estão os nossos companheiros leigos, servidos de muitas espécies de carnes de que, em especial nesta quadra, é muito fértil a terra. E que bom vinho e capitoso este Cândia que nos servem e nos faz dormir a noite num repousante e restaurador sono, a mim e a frei Zedilho. É um aposento alto. Tinham-nos preparado e feito as camas, não de colchões moles e brandos, mas dos seus próprios hábitos e túnicas. Como cobertores, umas esclavinas, que são mantas brancas, grandes e feltrudas, a modo de bétnios. Fabricam-se na Esclavónia e correm por todo o Levante.

Serve-se delas a gente comum, que não tem muito de seu, mas são melhores e mais amorosas que as do nosso Alentejo, frias de Inverno e quentes de Verão.

Agasalhámo-nos, frei Zedilho e eu, o melhor que pudemos. Os companheiros gregos esses levaram a maior parte da noite a cantar e a tanger, para o que haviam trazido duas violas de arco e um alaúde. É esta gente muito inclinada à música e a passatempos, ainda que lhe falte as boas vozes do nosso Portugal.

No dia seguinte, tomada a bênção do abade, partimos do mosteiro por outro caminho, indo connosco dois caloiros para nos guiarem. Acentuou-se em mim a impressão que tivera no dia anterior de que aquela serra era uma Arrábida em ponto grande, pois a vegetação, a rescendência, a finura do ar, a leveza da água, a qualidade da caça, o azul do céu, a limpidez do mar - tudo me fazia lembrar aquela minha serra. íamos conversando destas coisas e de outras, pois não era dificil entender-nos porque toda a gente nobre das terras sujeitas a Veneza fala e compreende bem o italiano, quando um daqueles senhores gregos nos disse: Sois decerto inclinados a ver curiosidades... Não quereis tomar um pouco de trabalho e ir ver uma notável antiguidade que fica não muito desviada do caminho que levamos? E que antiguidade era essa? O labirinto do Minotauro. O labirinto! Mas que maravilha!, exclamei entusiasmado e agradecendo-lhe exuberantemente a ideia». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,

sábado, 30 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Maldito veneziano!, rosnou-me ao ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava. Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra!»

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O Breviário

«Mas eles acudiam muitas vezes por estes sítios, salteando o que achavam mal provido. Tornássemos com a brevidade possível, rogava-nos. Partimos da nau e já teríamos caminhado um bom tiro de arco quando dela veio correndo após nós um veneziano com quem tínhamos muita familiaridade.  Fra Pantaleone! Fra Zedilho!, gritava-nos ainda de longe, ofegante. - Aspettate! Que se passa, Francesco? Não sabia da nossa partida, disse-nos em voz baixa, tomando-nos de parte. Foi por acaso que chegou ao convés e nos viu vir. Perguntou a Signor Nicolló e, logo que soube aonde nos dirigíamos, veio ter connosco.

Mas que se passa, Francesco?, insistíamos. Per amor’ di Dio, não seguíssemos! Regressássemos à nau.. Não quiséssemos ir com aqueles gregos. Porquê, Francesco? Porquê? Grave perigo, risco de não tornar!... Perfídia! Má fé! Malícia! Torpe mentira!, gritou de súbito, muito agastado, um dos fidalgos cipriotas, que se havia aproximado e entendido alguma palavra das que Francesco nos dizia, suspeitando o que podia ser. Em companhia de tanta honra como a sua e de seus companheiros não havia que temer!...

Aproximavam-se os outros fidalgos gregos, curiosos com o ruído, querendo saber o que se passava. Francesco está-lhes a inculcar que, se forem connosco, não mais regressarão. Ah! Maldito! Como podeis dizer tal coisa! Infâmia I Per la Madonna! Quem havia de crer em tal aleivosia?, julguei necessário intervir e, virando-me para Francesco, disse-lhe: Meu bom Francesco, muito vos agradecemos, frei Zedilho e eu, o vosso zelo. Mas olhai que exagerais um tanto, porque não podeis pautar a conduta de tão nobres senhores como estes que nos acompanham pela dos salteadores da montanha. Voltai sossegado à nossa nau, que nós seguiremos nosso caminho em muito excelente companhia.

Só fiz isto por bem!, escusava-se envergonhado Francesco. Começava a dar-me conta de uma triste realidade que dizia respeito às relações de cristãos latinos com cristãos gregos. Uns e outros, esquecendo-se de que ambos professam a religião de Cristo, em vez de sentimentos de irmandade cultivam uma tal animosidade que atinge o ódio quando é o caso, como o de Cândia, de a terra de Gregos estar sob o domínio de nação latina, os Venezianos.

Maldito veneziano!, rosnou-me ao ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava. Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra! Esta é nossa! Nossa!... Contou-me que é tão grande o ódio que os Candiotos têm aos latinos, vendo-se deles sopeados e sujeitos, que muitas vezes tem acontecido, achando gregos a algum latino só e em parte que ninguém o possa testemunhar, não terem a menor hesitação e escrúpulo em o matar. Mas nós éramos latinos e eles não nos estavam mostrando ódio! Explicava-me que o ódio era a Veneza, e nós, padres da Ordem de São Francisco que eles sobremaneira prezavam, além de que tinham em muita admiração e estima Portugueses e Espanhóis, cujos feitos corriam mundo... Assim, seguindo nosso caminho, por experiência vimos não ser sem causa o aviso de Francesco, embora errado em relação aos cipriotas que nos acompanhavam. Estes senhores gregos não consentem que um só momento nos apartemos deles. Que eram paragens muito perigosas aquelas! Havia muitos ladrões e os homens selvagens como os que víramos na nau estavam acostumados a sair aos caminhos a buscar sua presa». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História, 

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio P. Couto. «… o título foi mudado para Sala de torturas. Lembremo-nos de que foram as descrições caricaturais de Diderot, Voltaire e até de Dostoiévski que formaram na mente do homem de hoje a visão da Inquisição como um espectro»

Cortesia de wikipedia e jdact

Outra Visão da Inquisição (maldita)

«Analisando os factos, é difícil pensar que alguém se atreveria a defender a (maldita) Inquisição. Mesmo assim, o professor de filosofia Roman Konik, ligado à Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw, na Polônia, e autor do livro Em Defesa da Santa Inquisição arrisca essa posição. Seu livro despertou muito interesse, mas sofreu boicotes de livrarias, por causa da má fama que a (maldita) Inquisição tem até hoje.

Em entrevista concedida à revista eletrónica Catolicismo ele comentou sobre a obra de Umberto Eco: Na mente do homem de hoje, há uma ideia comum que considera o inquisidor como um velho monge encapuzado com inclinações sádicas, inflamado do desejo de autoridade. O melhor exemplo disso é a figura de Bernard Gui, inquisidor de Toledo, descrito pelo conhecido medievalista italiano Umberto Eco em seu livro O Nome da Rosa. Pior ainda é a imagem apresentada no filme realizado com base em tal obra.

Bernard Gui, como figura histórica real, foi inquisidor de Toledo e durante 16 anos exerceu esse cargo. Julgou 913 pessoas, das quais apenas 42 ele entregou ao tribunal civil como perigosos rebeldes (reincidentes, pedófilos, criminosos), o que não significava absolutamente pena de morte para eles. Em muitos casos, Gui indicava tratar-se de doença psíquica, suspeição de heresia, desistindo de interrogatórios.

Segundo a visão preconceituosa dos protestantes, é certo que essas pessoas iriam para a fogueira, ao contrário da verdade histórica. E importante registar que escritores protestantes, pouco simpáticos à Inquisição, começaram a escrever a história dela de maneira desfavorável, apresentando-a deformada. Também nas expressões artísticas das épocas posteriores à medieval verificou-se um reflexo dessa visão caricatural. Mas basta analisar o mundo artístico medieval para observar quadros que apresentam São Domingos convertendo os hereges, São Bernardo de Claraval discutindo com eles, ou então pinturas de inquisidores mártires morrendo nas mãos de hereges, por exemplo, o martírio de São Pedro de Verona, ou de São Pedro de Arbués, assassinado na catedral de Zaragoza.

Exemplo de ódio radical contra a Igreja e da manipulação a que me referi é um quadro no Museu Nacional de Budapeste, apresentando uma sala de torturas, intitulado no catálogo Inquisição. Só depois de muitos protestos de historiadores, mostrando que o quadro apresentava cena de tortura em um tribunal civil, é que o título foi mudado para Sala de torturas. Lembremo-nos de que foram as descrições caricaturais de Diderot, Voltaire e até de Dostoiévski que formaram na mente do homem de hoje a visão da Inquisição como um espectro.

Os historiadores poloneses também não ficaram atrás dos historiadores progressistas. Deparando diariamente com essa visão distorcida da Inquisição, o homem comum é inclinado a aceitá-la como verdadeira (????). Talvez a opinião do investigador seja a verdade. Afinal, há um grande número de pesquisadores que insistem em afirmar que os inquisidores eram homens esclarecidos e que tratavam os hereges como portadores de doenças mentais. O suspeito de heresia, segundo os registos históricos, era tratado assim: o suspeito não recebia os sacramentos necessários e estabelecidos pelo catolicismo. Caso ele não se arrependesse de sua conduta, seria chamada a autoridade não religiosa, principalmente em casos de agressão verbal ou física.

Se nem mesmo assim a pessoa se mostrasse arrependida, era considerada como anátema, ou seja, reconhecida como passível de excomunhão. Alguns autores vão mais longe e afirmam que o uso da tortura em processos inquisidores era um facto bastante restrito, embora não se saiba mais detalhes do quanto poderia ser restrito. Ainda de acordo com essas pesquisas, a tortura era autorizada em casos em que não houvesse provas confiáveis, testemunhas fidedignas ou quando o acusado já tivesse antecedentes como má fama, maus costumes ou tentativas de fuga. Assim, o Concilio de Viena indicou que os inquisidores recorressem à tortura apenas em caso de aprovação pelo bispo diocesano e por uma comissão julgadora que deveria analisar cada caso». In Sérgio P. Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, da Inquisiçãoà renúncia de Bento XVI, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

Cortesia de EGutenberg/JDACT

JDACT, Sérgio P. Couto, Vaticano, Religião, Conhecimento, 

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio P. Couto. «A exemplo de muitos outros inquisidores, inclusive do polémico Savonarola, foi poderoso, temido e respeitado dentro e fora do ambiente eclesiástico por defender seus ideais com ferocidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Principais Correntes Hereges

«(…) Puritanismo: Concepção da fé cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da Reforma. Pretendia purificar a Igreja Anglicana, ao retirar os resíduos do Catolicismo, de modo a tornar a sua liturgia mais próxima à do Calvinismo.

Monarquianismo: Série de crenças que enfatizam a Unidade Absoluta de Deus. A crença conflitua com a doutrina da Trindade, que vê em Deus uma unidade composta pelo Pai, Filho e Espírito Santo. O adicionismo, uma de suas correntes, diz que Deus é um único ser, superior a tudo e completamente indivisível. Assim, o Filho não foi co-eterno com o Pai, mas sim revestido (ou adoptado) de Deus para pôr em prática seus desígnios.

Maniqueísmo: Fundada pelo profeta persa Mani ou Manes no século III, na Pérsia ou na Babilónia. Divide o mundo entre Bem, ou o Deus bom, e o Mal, ou o Deus mal. A matéria é intrinsecamente má, por isso o espírito é intrinsecamente bom e, ao tomar um corpo físico, deixa-se corromper.

Arianismo: Visão sustentada pelos seguidores de Arius, bispo de Alexandria nos primeiros tempos da Igreja primitiva. Esse movimento negava a existência da consubstancialidade (ou seja, que possui a mesma substância) entre Jesus e Deus. O Cristo seria preexistente, uma criatura mais excelsa, que encarnara em Jesus de Nazaré. Este seria, por sua vez, um subordinado de Deus, e não o próprio. Ário afirmava que só existe um Deus e que Jesus seria apenas seu filho, e não o próprio.

Nestorianismo: Doutrina do século V que afirma que há em Jesus Cristo duas pessoas distintas: uma humana e outra divina, completas de tal forma que constituem dois entes independentes. Essa doutrina surgiu em Antioquia e manteve forte influência na Síria. É sustentada ainda hoje por correntes ligadas ao movimento Rosacruz e à Gnose.

A Inquisição (maldita) Medieval

A versão medieval da Inquisição (maldita) começou suas actividades em 1184, na famosa região do Languedoc, no sul da França, lugar polémico por ser acusado de ser o berço de movimentos heréticos, como o dos cátaros ou albigenses. Os cátaros acreditavam em dois deuses: um bom e espiritual e outro mau e físico. Segundo sua crença, Cristo teria sido enviado para salvar as almas boas, que iriam para o céu, enquanto as más voltariam por meio da reencarnação. Isso fez com que os clérigos criassem uma Inquisição (maldita) para avaliar a propagação de tais ideias em 1183, quando delegados papais descobriram essa vertente e a consideraram heresia no Concílio de Verona, em 1184, com o nome de Tribunal da Inquisição (maldito). Tal criação se deu por meio de duas bulas papais, assinadas por Gregório IX em Abril de 1233. A partir de então, a instituição julgou e condenou vários propagadores de heresias, mas também absolveu muitos, o que é pouquíssimo divulgado. O texto seguinte é parte da bula Licet ad capiendos, de 1233, que marca o início da Inquisição (maldita) e é dirigida aos dominicanos inquisidores. Vejamos o que diz:

Onde quer que os ocorra pregar, estais facultados, se os pecadores persistem em defender a heresia apesar das advertências, a privá-los para sempre de seus benefícios espirituais e proceder contra eles e todos os outros, sem apelação, solicitando em caso necessário a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposição, se isto for necessário, por meio de censuras eclesiásticas inapeláveis. Vale lembrar que os dominicanos eram chamados originalmente de Ordem dos Pregadores. Têm como objectivo pregar a mensagem de Jesus e a conversão ao cristianismo. Essa ordem foi fundada em Toulouse, na França, em 1216, por São Domingos de Gusmão, um sacerdote espanhol originário da Caleruega. Os religiosos dessa ordem viviam em conventos próximos a grandes cidades e realizavam votos de pobreza, obediência e castidade, o que os tornava religiosos não monges.

Não é à toa que Humberto Eco escolheu Bernardo Gui, justamente um dominicano, para caracterizar seu inquisidor impiedoso. Essa figura histórica foi o bispo de Lodève, na região do Languedoc, e é considerado como um dos escritores mais produtivos da época.

A exemplo de muitos outros inquisidores, inclusive do polémico Savonarola, foi poderoso, temido e respeitado dentro e fora do ambiente eclesiástico por defender seus ideais com ferocidade. Foi um dos que mais atacou os cátaros, presidindo julgamentos entre 1307 e 1323». In Sérgio P. Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, da Inquisiçãoà renúncia de Bento XVI, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

 Cortesia de EGutenberg/JDACT

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A Fortaleza de Alpalhão. Francisco S. Lobo. «… dentro da dicta çerca estaa huu patio xvij varas e meya de longo. e xiij e meya de largo muy chãao e bem feito. e ao canto do dito patio e çerca estaa ha dita torre…»


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Legenda:

Planta do Castelo de Alpalhão, século XVI;

Altura da Torre de Menagem, 12 varas;

Altura das Muralhas, 5 varas;

Altura dos Cubelos, 8 varas;

Largura das Muralhas, 1 vara e 1 pé;

(Segundo Duarte d’Armas)

«A espessura dos muros laterais era de uma vara e um pé, sendo a sua altura de cinco varas. A Torre de Menagem comunicava com os aposentos sobradados, destinados à residência do alcaide. Nessa torre, nos Cubelos e em volta dos muros havia um grande número de Troneiras ou Bombardeiros, que eram aberturas por onde, nas horas de luta, se disparavam os tiros de artilharia.

Em volta da fortaleza acumulava-se, a nascente, sul e poente, o casario da povoação. A norte, erguia-se a Igreja, de estilo românico no local onde está a actual Matriz. No reinado de João III o castelo apresentava bom aspecto e bom aposentamento.

João IV mandou guarnecer a vila da muralhas que foram concluídas no reinado de Afonso VI, em 1660. Tanto o Castelo como as muralhas, foram destruídas em Junho de 1704 durante a Guerra da Sucessão, pelo Franco-Espanhol, comamdado pelo duque de Berwick e por Filipe V de Espanha, quando se dirigia de Castelo Branco para Portalegre.

Alpalhão, a par de Salvaterra do Extremo, são casos únicos de esquecimento e perda de memória do património construído. Não estamos certos que no século XIX fossem ainda visíveis

as ruínas mas em 1758 o vigário afirmava que, à excepção de uma parede o castelo medieval estava em razoáveis condições de conservação. Um texto de 1874, escrito por Pinho Leal, indica que (o castelo e os muros) estão completamente desmantelados…

Os desenhos de 1509 representam um castelo de forma quadrada, guarnecido com uma torre de menagem de secção também quadrada. A ausência de ameias nos muros é tão regular que deve corresponder a uma intenção de beneficiar o sistema defensivo. A existência tão profusa de troneiras de uma forma que faz lembrar o Castelo de Vimioso é, aliás, um sinal de que havia uma preocupação de manter a fortificação em condições de se defender.

No Tombo da Comenda de Alpalhão, elaborado por frei Francisco capelão do rei, notário e escrivão da visitação, em 1505, procede-se à seguinte descrição do castelo:

Tem na vila huua torre alta e forte. toda de pedra e cal de fundo acima. bem ameada e de booa largura .e tem dous sobrados igualmente corregida. oliuellada de castanho em três painees e cuberta de telha. e tem no sobrado de baixo huua janella d asentos com suas portas ainda booas contra ho norte. e no sobrado de cima tem quatro janelas d asentos com suas portas cada huua em sua quadra. e huua chaminee de dous fogos. em cada sobrado seu fogo. leua de longo çinquo uaras e meya bem medidas e çinquo de largo escassas. e sobem pera ho sobrado de çima per dentro da torre per huua escaada de madeira bem corregida. contra ho ponente. tem huua salla sobradada e oliuellada de castanho em três painees .e tem huua janella ao norte e outra ao sul ambas d asentos com suas portas booas e nouas. e ao ponente tem huua boa chaminee leua esta sala de longo sete uaras e meya e çinquo e meya de largo. e desta salla sobem pera ho primeiro sobrado da torre per huua escaada de madeira de poucos degraaos. sobem a esta salla per huua escaada de pedra que em cima tem huu tauoleiro argamassado com seu peitoril alto. cuberto de oliuel muito bem obrado e telhado em quatro aguas. ha qual salla e çinquo ameyas da dita torre. fernam da silua comendador da ficta comenda mandou fazer toda de nouo. debaixo da dicta sala vay huua logea com dous portaaes de cantaria bem feitos. huu de serujntia da dita logea grande e outro pequeno que uay pera huu quintal e tem ainda outro portal na parede da torre e he outrosi de cantaria. ho que todo o dito fernam da silua mandou fazer. aalem da dita salla estas huua casa que ora serue de cozinha terrea. e tem huua grande e booa chaminee. leua de longo çinquo haras e meya e três e meya de largo. ha qual cozinha ho dicto comendador mandou fazer de nouo. contra ho ponente tem huua casa de estrebaria com suas manjadoiras. todo nouo e bem feito bem madeirada e cuberta de telha que leua .xviij. varas de longo e quatro de largo. ha qual ho dicto comendador outrosi de nouo mandou fazer. contra ho norte estaa outra casa que serue de çeleiro. toda ladrilhada per baixo com suas tulhas de madeira bem feitas e bem repartidas bem madeirada e cuberta de telha e leua oito varas e meya de longo e três de largo. com seu portal de pedraria e suas portas bem fechada. E logo junto do dicto çelleiro outra casa parede em meyos. pera apousentamento de homens e he do tamanho do dito çeleiro. e seu portal de cantaria com booas portas. has quaaes casas ho dicto comendador outrosi mandou fazer. a rredor do dicto apousentamento estaa huua cerca nouamente começada de fazer e estaa jaa de noue couados d alto.cinquo palmos de grossura e tem tres cubelos nos três quantos da mesma altura e grossura com suas bonbardeiras de pedraria. e tem huu grande portal de pedraria bem obrado com suas portas nouas e fortes. e bem fechadas. huu dos ditos três cubelos que estaa ao ponente fez o dito comendador em huu chãao que comprou ha qual çerca e culbelos. ho dicto comendador mandou fazer de nouo. dentro da dicta çerca estaa huu patio xvij varas e meya de longo. e xiij e meya de largo muy chãao e bem feito. e ao canto do dito patio e çerca estaa ha dita torre. e aalem della e da dita salla e cozinha estaa huu quintal que ho dicto comendador fez ha maior parte em huu chãao que comprou e deu aa hordem. no qual quintal estam .xv. limeiras e duas larangeiras e xj pees de parreiras e três pereiros e três amexieiras e huua figueira e parte ao norte com ha dita salla e torre. e das outras bandas com casas de pedro lopez e de ioham uelho e de estejam afonsso e com ho cubello do muro. Leua de longo xxxiiij varas e oito de largo.

In Jerónimo M. Canatátio, Al-Palh’am, História e Património, Associação dos Amigos dos Castelos, Alpalhão, Online.

Com a amizade de José de Caldeira Martins

Cortesia de Al-Palh’am/JDACT

 JDACT, Alentejo, Alpalhão, José Caldeira Martins, Cidadania, Francisco S. Lobo, Jerónimo Canatário, Conhecimento,

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

A Fortaleza de Alpalhão. Francisco S. Lobo. «Caminhando ao longo da Rua do Castelo, que nasce perto da Igreja Matriz. Podemos localizar a entrada para o interior do quarteirão (espaço que possivelmente, delimita a antiga fortificação). Esta faz-se pelo acesso que nos conduz à Torre do Relógio»



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Com a devida vénia a José Caldeira Martins

«Sem vestígios evidentes confirmados no seio do povoado que o absorveu e em contraste com a memória das imagens que Duarte d’Armas nos legou, o Castelo de Alpalhão (fortaleza) parece perdido na bruma do tempo…

Os desenhos de 1509 de Duarte d’Armas são de uma força e beleza tal que nos encorajam a tentar identificar a antiga implantação e o traçado no terreno deste .pequeno castelo de planície. Isso iria valorizar a antiga vila medieval e repor a identidade perdida. A definição rigorosa do sítio exige o estudo das paredes das casas antigas situadas em torno do local a investigar e  sondagens nos seus quintais. Haverá, estamos certos, vestígios materiais dos muros do recinto no tecido da malha urbana da antiga vila.

Numa época em que se começa a generalizar a importância da memória histórica dos aglomerados, é oportuno fazer um esforço para que Alpalhão tira partido dessa mais valia…

Onde se Situaria?

Caminhando ao longo da Rua do Castelo, que nasce perto da Igreja Matriz. Podemos localizar a entrada para o interior do quarteirão (espaço que possivelmente, delimita a antiga fortificação). Esta faz-se pelo acesso que nos conduz à Torre do Relógio. Subindo ao alto da torre é visível em seu redor o espaço livre dos quintais das casas. É aqui que devemos procurar vestígios que nos ajudem a localizar o espaço correspondente ao terreiro interior do castelo medieval.

Ao correr do olhar não há nada que chame em especial a atenção e possa ser identificado seguramente como elemento construtivo da fortificação. O embasamentosobrelevado da torre terá pertencido bao castelo…

Torre do Relógio

Localiza-se no centro da vila, no local onde estaria edificado o Castelo de Alpalhão. É um edifício banal do começo do século XVIII, tem forma quadrangular, tendo um pequeno eirado com espaldares e corucheis. Conta com quatro olhais com arcos de volta redonda e cúpula cónica esquinada. Sobe-se por uma pequena escadaria assente sobre os restos da antiga torre do castelo. Conservação  regular.

Erguido em 1300, no reinado do monarca Dinis esta fortaleza tinha uma forma rectangular, quase quadrada, tendo no ângulo de sudoeste A Torre de Menagem, também rectangular, com doze varas de altura e três andares ou pavimentos. Em cada um dos restantes ângulos tinha um Cubelo de forma circular, abobadado , com a altura de oito varas».

(Continua)

 In Jerónimo M. Canatátio, Al-Palh’am, História e Património, Associação dos Amigos dos Castelos, Alpalhão, Online.

Com a amizade de José de Caldeira Martins

 Cortesia de Al-Palh’am/JDACT

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segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

A Mão de Fátima. Ildefonso Falcones. «Após o cordeiro com alcachofra-brava, Zahara, sua meia-irmã de onze anos, trouxe uma bandeja de uvas-passas, mas Hernando nem sequer teve tempo de levar algumas à boca»

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«Apesar de que a ideia de a moça ter sido violentada por um sacerdote cristão lhe repugnasse, Brahim aceitou o trato e a levou consigo para Juviles. Mas, contra os desejos de Brahim, Hernando nasceu forte e com os olhos azuis do padre que havia violado sua mãe. Também sobreviveu à infância. As circunstâncias de suas origens correram de boca em boca, e, embora o povo se tivesse apiedado da moça violada, não sucedeu o mesmo com o fruto ilegítimo do estupro; aquele desprezo foi crescendo ao ver-se a atenção que dedicavam ao garoto o padre Martín e Andrés, maiores até que as que concediam às crianças cristãs, como se quisessem salvar da influência dos seguidores de Maomé o bastardo de um sacerdote.

O meio sorriso com que Hernando entregou as azeitonas à mãe não conseguiu enganá-la. Ela lhe acariciou o cabelo com doçura, como fazia sempre que pressentia sua tristeza, e ele, mesmo na presença de seus quatro meios-irmãos, a deixou fazer: eram poucas as ocasiões em que sua mãe podia demonstrar-lhe carinho, e todas, sem excepção, se davam na ausência de seu padrasto.

Brahim se havia somado sem hesitar à rejeição da comunidade mourisca; seu ódio pelo nazareno de olhos azuis, o favorito dos sacerdotes cristãos, havia recrudescido à medida que Aisha, sua mulher, dava à luz seus filhos legítimos. Aos nove anos, ele foi desterrado para o telheiro, com as mulas, e só comia dentro de casa quando o padrasto estava fora. Aisha teve de ceder aos desejos do marido, e a relação entre mãe e filho se dava através de gestos subtis carregados de significado.

Naquele dia, o almoço estava preparado, e seus quatro meios-irmãos esperavam sua chegada. Até o menor deles, Musa, de quatro anos, mostrava um semblante duro diante de sua presença. Em nome de Deus, clemente e misericordioso, rezou Hernando antes de sentar-se no chão. O pequeno Musa e seu irmão Aquil, três anos mais velho, o imitaram, e os três começaram a pegar com os dedos, directamente da caçarola, os pedaços da comida que sua mãe havia preparado: cordeiro com alcachofra brava cozinhados com azeite, menta e coentro, açafrão e vinagre.

Hernando desviou o olhar para a mãe, que os observava encostada numa das paredes da pequena e limpa peça que usavam como cozinha, sala de jantar e quarto provisório de seus meios-irmãos. Raissa e Zahara, suas duas meias-irmãs, achavam-se em pé junto a ela, à espera de que os homens terminassem de comer para poderem fazê-lo elas por sua vez. Ele mastigou um pedaço de cordeiro e sorriu para a mãe.

Após o cordeiro com alcachofra-brava, Zahara, sua meia-irmã de onze anos, trouxe uma bandeja de uvas-passas, mas Hernando nem sequer teve tempo de levar algumas à boca: um som de cascos abafado, distante, o obrigou a levantar a cabeça. Seus meios-irmãos perceberam o gesto e deixaram de comer, atentos à sua atitude; nenhum dos dois tinha capacidade de prever com tanta antecipação a chegada das mulas.

A Velha!, gritou o pequeno Musa quando o som da mula se tornou perceptível para todos. Hernando apertou os lábios antes de virar-se para a mãe. Eram os cascos da Velha, parecia confirmar ela com o olhar. Depois ele tentou sorrir, mas a expressão ficou num esgar triste, similar ao que esboçava Aisha: Brahim estava voltando para casa.

Louvado seja Deus, rezou para dar fim à refeição e levantar-se com aborrecimento.

Lá fora, a Velha, magra, seca, repleta de mataduras e livre de qualquer arreio, o esperava pacientemente. Venha, Velha, ordenou-lhe Hernando, e com ela se dirigiu para o telheiro.

O irregular som dos pequenos cascos do animal o acompanhou enquanto rodeava a casa. Uma vez no interior do telheiro, jogou-lhe um pouco de palha e acariciou-lhe o pescoço com carinho.

Como foi a viagem?, sussurrou-lhe enquanto examinava uma nova matadura, que não tinha antes de partir». In Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, 2010, Bertrand Editorial, Grandes Romances, 2010, ISBN 978-972-252-226-7.

Cortesia de Bertrand E/JDACT

 JDACT, Ildefonso Falcones, Conhecimento, Literatura, Religião,

Idade Média. Umberto Eco. «… imobilidade da sua história, dos islâmicos, que hoje, por motivos óbvios, atraem particularmente as atenções, ou de minorias como a dos judeus e dos heréticos, na construção da identidade e das vicissitudes europeias»

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História

«E interrogamo-nos se estamos a viver o declínio daquela Europa que aqui tem as suas origens, o fim de um ciclo de civilização, e também o dos Estados Unidos da América, filhos dessa mesma civilização, que, depois de terem dominado sem contestação no século passado, mostram sinais de cansaço, enquanto alguns países asiáticos parecem proceder prepotentemente à sua entrada no palco de uma história vista com olhos europeus. Uma recolocação do continente no quadro geopolítico mundial parece inevitável. É também evidente a crise de identidade dos europeus no momento em que as deslocações de país para país e de continente para continente já não são apenas factos individuais, mas são tão consistentes que nos induzem a falar de migrações iminentes ou já em curso; e em que se vão formando grupos que parecem ilhas com coesão interior e limites bem desenhados, mergulhadas em ambientes que se pretendem homogéneos ou que se descobrem como tais a despeito de todos os discursos sobre tolerância, multiculturalismo e interculturalismo. Ao mesmo tempo, entrevê-se a crise dos Estados nacionais, os seus primeiros núcleos localizam-se exactamente nesta parte da Idade Média, assediados pelo surgir e ressurgir de regionalismos e localismos, pela consolidação de organismos multinacionais e supranacionais, por uma economia globalizada, por meios de comunicação à escala mundial, rápidos ou instantâneos, que se não limitam a pôr em contacto áreas e sistemas de vida anteriormente isolados ou não imediatamente contíguos, mas implicam novas reflexões sobre a natureza, a licitude e a conveniência desses sistemas de vida e sobre sua recíproca compatibilidade.

Não menos influentes, embora à primeira vista menos estreitamente ligados ao plano histórico, são os avanços da ciência e da técnica que põem em crise alguns valores e comportamentos arraigados, como os bem conhecidos, mas que se tornaram problemáticos, da fecundação artificial ou relacionados com a morte e, principalmente, o próprio conceito de homem, a fronteira entre o humano e o não humano, entre umas máquinas cada vez mais inteligentes e uns homens recheados de componentes artificiais. Fala-se do regresso à natureza e à religião, à busca de pontos de referência seguros, postos fora do tempo.

Por um lado, procura-se esquecer que a natureza não pode ser separada da sua história, que não é possível considerar uma natureza primigénia e inalterada, só depois comprometida pela intervenção humana; e que nem a Idade Média, com os seus bosques habitados por animais selvagens, os seus mares sem embarcações, a raridade dos povoamentos e do tráfego e os seus pretensos comportamentos primordiais, pode ser um fundo imóvel capaz de nos dar a medida da mudança verificada até à idade contemporânea, como pretende certo medievalismo amaneirado.

Por outro lado, põe-se em evidência o papel da religião na constituição da identidade europeia, na formação da Christiana communitas, Christiana societas, Christiana respublica, ou Christianitas. E discute-se se a influência do cristianismo foi ou não fundamental, se deve ser remetida para o silêncio ou rejeitada como perigosa para a laicidade da vida pública e dos Estados, recentemente conquistada a partir do século XIX , ou se foi tão exclusiva que deva ser mencionada na constituição europeia, de preferência a outras características distintivas, como por exemplo a precoce formação de uma mentalidade capitalista ou de um espírito de aventura e de conquista, ou ainda de uma vontade de transformação da natureza e da realidade circundante, cujo desabrochar também poderia ser correctamente atribuído à Idade Média.

Neste tempo, que muitos dizem de pós-modernidade e pós-secularidade, mas cheio de incerteza, e, exactamente por isso, de subtil análise da história passada e do presente com base numa pluralidade de pontos de vista centrados em objectos de estudo anteriormente negligenciados, de relativismo e de medo do próprio relativismo, também a história perde a linearidade que lhe era atribuída pela visão eurocêntrica de um progresso sem fim. Parece agora o resultado, mais ou menos fortuito, da interseção de acontecimentos só em parte determinados e regulados por uma vontade humana consciente, ainda que em pequena parte, ou melhor, fragmentados em mil vontades diferentes e frequentemente contraditórias, de tensões e contratações, de êxitos parciais e de malogros.

A avaliação da Idade Média, considerada a partir dos humanistas como uma idade intermediária privada de valor próprio, uma época de barbárie, violência, miséria e anarquia, encravada entre o esplendor da idade clássica e a recuperação renascente dessa idade, não pode deixar de ressentir-se de tais orientações. O que ainda na idade do Iluminismo fora rejeitado em bloco, como o tempo do nascimento da feudalidade, da separação da sociedade em estratos distintos e dotados de regras e direitos próprios, destinados a percorrer um caminho pré-indicado e a deslocar para o Além sonhos e esperanças de resgate, em nome do descobrimento de uma razão universal, de uma natureza racional, de uma humanidade libertada de origens constituídas por superstições e abusos, e que o século seguinte revalorizara como um tempo de redescobrimento da espiritualidade, de fundação de uma unidade religiosa cristã, de formação das independências nacionais e comunais, parece hoje decomposto em segmentos que não encontraram uma sistematização unívoca.

Hipóteses para uma periodização da Idade Média

A data geralmente indicada como início da Idade Média é, como se sabe, o ano de 476, da deposição do imperador Rómulo Augústulo (459-476, imperador desde 475), considerada como o fim do Império Romano do Ocidente; mas não falta quem indique a entrada dos lombardos em Itália, em 567 ou 568, ou a chegada dos francos, em 774, e há também quem proponha que o período decorrido até o século VI seja atribuído à Antiguidade tardia e que só a partir do século seguinte se deve falar de alta Idade Média. É certo que a presença islâmica no Mediterrâneo a partir dos séculos VII e VIII constitui uma cesura importante, embora a tese de Henri Pirenne (1862-1935), segundo a qual este facto determinou o fim do mundo antigo, tenha sofrido algum redimensionamento. Igualmente importante parece a nova ordem imposta no centro do continente por Carlos Magno (742-814, rei desde 768, imperador desde 800).

Até o ano 1000, demoradamente carregado de significados apocalípticos, parece ter perdido, em parte, a sua carga periodizadora, principalmente para quem situa os séculos centrais da Idade Média entre o IX e o XII. De qualquer maneira, as passagens do século V para o VI e do século X para o XI continuam a representar viragens significativas na história europeia, às quais se optou por atender. A própria tendência para a multiplicação de referências e de acontecimentos que possam ser julgados fundadores, bem como a sua variedade consoante a zona geográfica e o ângulo de visão sob o qual são examinados, não só possibilita periodizações diferentes como salienta, além das transformações do mundo antigo, o fundamental contributo dos povos bárbaros, dos bizantinos, subtraídos à pretensa imobilidade da sua história, dos islâmicos, que hoje, por motivos óbvios, atraem particularmente as atenções, ou de minorias como a dos judeus e dos heréticos, na construção da identidade e das vicissitudes europeias». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

domingo, 24 de dezembro de 2023

Idade Média. Umberto Eco. «É um longo momento histórico em que se opera o nascimento e a desagregação de um novo império, o carolíngio, em que são postas à prova a tendência para a centralização dos poderes…»

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À maneira de conclusão

«Tomás tem uma visão muito biológica da formação do feto: Deus só introduz a alma no feto quando este adquire, gradualmente, primeiro, a alma vegetativa e, depois, a alma sensitiva. Só nessa altura, num corpo já formado, é criada a alma racional (Summa Theologica, I, 90). A Summa contra Gentiles (II, 89) diz que há uma gradação na geração por causa das formas intermédias de que o feto é dotado, desde o início até à forma final. E eis porque no suplemento à Summa Theologica (80, 4) se lê uma afirmação que hoje soa como revolucionária: depois do Juízo Universal, quando os corpos dos mortos ressuscitarem para que a nossa carne participe na glória celeste (quando, segundo Agostinho, reviverem na plenitude da beleza e completude adulta não só os nados-mortos como, numa forma humanamente perfeita, os próprios caprichos da natureza, os mutilados, os concebidos sem braços ou sem olhos), os embriões não participarão nessa ressurreição da carne. Não fora ainda infundida neles a alma racional e por isso não eram seres humanos. Salta aos olhos de qualquer pessoa que a posição de Tomás é muito diferente da actualmente sustentada em vários ambientes eclesiásticos e parece muito mais próxima das teorias hoje atribuídas à cultura laica. Não é aqui que se deve decidir quem tem razão nesta antiga polémica. Mas o certo é que este episódio deve tornar-nos cautelosos ao falar da Idade das Trevas.

História

Levantam-se questões de não pouca monta quando revemos as vivências do princípio da Idade Média, longa época de decadência assinalada inequivocamente por uma acentuada quebra demográfica. Na verdade, este período deve ser também compreendido como a época em que morre o mundo antigo e se forma lentamente um novo amálgama com os povos bárbaros, com as suas formas de agregação social, as suas línguas, as suas instituições e os seus direitos. É uma época em que se dissemina uma cultura religiosa comum, o cristianismo, que é a religião do Estado no Império Romano a partir de Teodósio (c. 347-395, imperador desde 379), que acabará por modificar profundamente o sentir das populações. É um tempo em que o baricentro da vida política e económica se desloca do Mediterrâneo para o Norte e para o Leste e começa a formar-se a Europa, como hoje a conhecemos, em redor de alguns espaços destinados a dar origem a futuras nações (visigótica, lombarda e franca, por sua vez dividida em Nêustria e Austrásia), embora durante muito tempo o limite oriental fique mais a ocidente do que o que estamos habituados a considerar como limite geográfico. É um longo momento histórico em que se opera o nascimento e a desagregação de um novo império, o carolíngio, em que são postas à prova a tendência para a centralização dos poderes e as forças centrífugas que irão actuar durante muitos séculos, em que se mede a relação de forças entre os príncipes e os papas, entre o Estado e a Igreja, e se avança para a construção de uma nova ordem social e económica baseada no sistema feudal, na grande propriedade fundiária, na hereditariedade dos ofícios, na servidão dos camponeses, que, apesar das muitas e profundas transformações e inovações ocorridas, será o tecido conectivo do continente até ao século XIX. São também os séculos em que gradualmente se define uma identidade europeia perante o islão e o Império Romano do Oriente, que, e não por acaso, é melhor dizer bizantino, e com novas vagas de bárbaros que pressionam as fronteiras orientais. Sendo verdade que qualquer período histórico só pode ser lido com base nas experiências do presente, alguns dos problemas que hoje se apresentam à atenção de políticos, economistas e estudiosos em geral, bem como aos meios de comunicação social e aos homens e mulheres que os enfrentam no dia a dia, chamam diretamente a terreiro justamente a Idade Média». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

 Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

sábado, 23 de dezembro de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… os seus versos à Zulmira. É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador, ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as rosas»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«Alamut... A lenda era antiga, Taxfin já a escutara na boca dos que haviam visitado a Pérsia. Cinquenta anos antes, um homem sábio tomara conta de um castelo inexpugnável, construído no topo de um monte íngreme, onde só se chegava por uma das encostas. O Ninho da Águia, como chamavam ao castelo de Alamut, ficava numa região montanhosa no extremo norte da Pérsia. O homem que durante décadas ali reinara tinha por nome Hassan-Ibn-Sabbah, e criara uma legião de seguidores islâmicos. Chamavam-lhe o Velho da Montanha, e a sua fama sanguinária espalhara-se.

Foi ele quem me treinou,  revelou a Morte com Duas Pernas. Aos dez anos, fora retirado aos pais e entregue em Alamut, como acontecia a muitos rapazes na região. Ali conhecera o líder espiritual e fora educado com a leitura dos textos sagrados do Corão. Éramos os seus filhos queridos e todos o amávamos. Hassan-Ibn-Sabbah treinava-os não só para serem dedicados muçulmanos, mas também para se tornarem guerreiros extraordinários, uma cavalaria espiritual para seu uso exclusivo. Selecionava os mais hábeis e formou um pequeno grupo de leais soldados, os fedayin, que davam a vida por ele e pelo Corão.

Se nos mandasse atirar de um penhasco, assim fazíamos. Vários morreram à minha frente, e a sua alma foi ter com as setenta virgens que por nós esperam no céu, contou o fedayin. Com o tempo, a seita de Alamut tornou-se perigosa para os seus vizinhos e o califa de Bagdad decidiu destruí-la. Porém, Hassan-Ibn-Sabbah era um génio e começou a usar tácticas até aí nunca tentadas. O Velho da Montanha enviava fedayin para as cortes dos inimigos, para matarem alguém, e cumprido o seu dever matarem-se também. As pessoas começaram a chamar-lhes haschischins ou assassins, pois eram certeiros e letais. Quem Hassan-Ibn-Sabbath declarasse que devia morrer era morto por um seu leal servidor. Depois, o assassin matava-se, para não ser preso.

Taxfin mantinha-se em silêncio. A Morte com Duas Pernas nunca deixara ninguém com vida, degolava todos os seus opositores. Contudo, nunca se matara, ao contrário do que dizia ter acontecido aos seus colegas de Alamut. Um dia fui escolhido por Hassan-Ibn-Sabbath para uma missão muito perigosa e longínqua, no Egipto. E cumpri-a, matando quem ele me ordenara. Mas não me matei como os outros fedayin. O homem riu-se para si próprio, emitindo um som maligno, como se estivesse possuído por um demónio. Depois, acrescentou: Já sabia o que ia acontecer em Alamut. Nem um homem santo e glorioso consegue enganar a morte, explicou o fedayin. Nenhum dos seguidores e sucessores de Hassan-Ibn-Sabbath conseguiu manter a união, e pouco a pouco os valorosos fedayin foram partindo. Apesar de bons religiosos e bons guerreiros, muitos perderam a fé, outros a capacidade de lutar. Sem Hassan-Ibn-Sabbath para iluminar as suas almas, apagaram-se na escuridão dos tempos.

Fui o único que prossegui o destino em que me iniciaram. Do Egipto, partira à procura de quem pagasse os seus serviços. Sabia matar muito bem, mas só no califado almorávida encontrara alguém que o compreendera. Ali Yusuf acolheu-me, disse o fedayin. Há quase uma década que aquele carniceiro matava para o califa de Marraquexe, e Taxfin suspirou de novo. A perna doía-lhe, mexeu-se um pouco na cama. Depois, perguntou: É verdade o que dizem dos fedayin, que fumam muito haxixe antes de matarem, para terem mais coragem? O outro respondeu a Taxfin com uma pergunta: Queres fumar haxixe antes de morrer? O marido de Zulmira disse que sim e então o persa atirou-lhe um saco e um cachimbo e Taxfin encheu-o. Depois, perguntou: Como o acendo? Pela primeira vez, o homem mexeu-se e dirigiu-se à lareira. Taxfin viu-o apanhar carvão em brasa com uma pinça de ferro. Depois, aproximou-se da cama e estendeu-lhe a pinça, e Taxfin acendeu o cachimbo nela. Deu umas passas, saboreando o fumo. Sabia bem, era haxixe de Marrocos. Uma onda de nostalgia invadiu-o. Sabes, disse ao homem, fumei muito haxixe aqui, em Hisn Abi Cherif, com alguns dos maiores poetas da Andaluzia a declamarem os seus versos à Zulmira. É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador, ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as rosas».  In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter…»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«O que coçava muito a cabeça voltou a fazê-lo e riu-se. O Rato juntou-se ao gordo, cujo rabo era enorme, e deu-lhe uma palmada nas costas. Este adora as soldadeiras, mas elas chamam-lhe Peida Gorda. E nós gostámos do nome! Peida Gorda, Peida Gorda, passa o dia a comer açorda!, trauteou. O visado riu-se. Parecia bonacheirão e amável, mas também devia ser tímido, como o Santinho, pois nada disse. Ramiro olhou para o que faltava, a quem inicialmente não vira a cara, pois guiava o cavalo onde ia o Ameixa. Era muito mais velho do que os outros, tinha os cabelos brancos e o rosto cheio de rugas, e Ramiro admitiu que fosse até mais idoso do que Gondomar. Chamam-me Velho, apresentou-se ele. E é o que eu sou, pois lutei ainda com El Cid em Valência, há mais de quatro décadas!

A referência ao grande guerreiro que os trovadores louvavam fez nascer um silêncio respeitoso no grupo, mas o Velho quebrou-o, perguntando se Ramiro já tinha morto alguns mouros. O rapaz confessou que nunca estivera em combates e o Velho orgulhou-se: Matei mais de cem sarracenos. Apontou para o arco e para as flechas de Ramiro e previu: E vós também ides matar em breve. Ramiro acenou com a cabeça, mas o velho rematou: Ou morrer. Os outros riram-se muito e nesse momento Gondomar reapareceu e disse que estava na altura de continuarem, e todos montaram os cavalos, dois a dois, e regressaram à estrada.

Por vezes, levantam-se-me dúvidas sobre a forma como Gondomar aceitou Ramiro na Ordem. Porque mudou de ideias? Só porque admirou a persistência do rapaz? Terá ele pensado que Ramiro, por ser filho de Paio Soares, sabia do segredo da relíquia? Ou terá desejado mantê-lo por perto, na esperança de que o pai viesse procurá-lo a Soure? É difícil ter a certeza, à luz dos acontecimentos posteriores. É por essas e por outras que esta foi uma investigação tão longa e difícil. A verdade podia estar escondida em qualquer lado, ou em lado nenhum.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

A velha criada de Zulmira foi a única testemunha dos acontecimentos trágicos que a seguir descrevo. Escondida dentro de um armário, jurou a Mem que sobrevivera por acaso. Ela dormia com a outra criada lá em baixo, junto às cozinhas, mas ouvira uma portada bater, no andar de cima, e levantara-se para a ir fechar. O ferrolho deve estar estragado, pensou. Tinha de dizer a Taxfin que mandasse substituí-lo. Podiam pedir ao almocreve que trouxesse outro de Córdova, havia lá bons ferreiros. De súbito, alarmou-se! Ouviu um gemido de sofrimento no andar de baixo. Abu Zhakaria já partira, mas as pessoas em Córdova e nas aldeias em redor consideravam o castelo de Hisn Abi Cherif seguro, os portões estavam sempre cerrados à noite, era praticamente impossível alguém entrar. Contudo, uma vaga de medo percorreu o seu corpo. Num pulo, aproximou-se de um armário, na sala ao lado do quarto de Taxfin. Já enfiada lá dentro, ouviu passos e pouco depois uma voz, no quarto de Taxfin. Matei a vossa criada, cortei o pescoço à velha. Taxfin estava deitado, acordara com o barulho da portada a bater e vira um vulto entrar no quarto. Agitado, reconheceu de imediato aquela voz, ouvira-a muitas vezes, nos nove anos que estivera com o califa. Aquele timbre rouco e ciciado era inconfundível. A Morte com Duas Pernas encontrava-se ali, no seu quarto, no seu castelo! Encostou-se para trás na cama, com as costas apoiadas na parede.

O outro continuou junto à porta, talvez temesse a chegada de alguém. De repente, atirou algo na direcção de Taxfin, algo que atravessou o quarto a voar e aterrou aos pés dele. Era a cabeça de uma das criadas velhas. Em silêncio, Taxfin rezou pela mulher morta. O homem acrescentou: Nem me viu. Depois, perguntou: Há mais alguém neste castelo, além de vós? O marido de Zulmira manteve-se calado e o homem insistiu: Vi roupas de outra mulher. Onde está ela? Taxfin não o iria ajudar. Por isso, mentiu: Partiu ontem à noite, para Córdova. O filho está doente. Ouviu o outro suspirar e afirmar: Estais a mentir. Foi com Abu Zhakaria para Coimbra? Taxfin ficou aterrado. Como é que ele sabia? O homem devia ler os seus os pensamentos, pois elucidou-o: O vosso leal Abu foi imprudente. Falou de mais em Córdova. Por lá ninguém gosta muito de vós. Não era novidade, mas pelo menos Taxfin conseguira desviar a atenção dele.

Esperava que a segunda criada se conseguisse manter escondida. Onde estaria? Olhou para a cabeça cortada na sua cama. A outra criada, mais nova do que a que morrera, costumava ir muitas vezes à arrábida onde estava enterrado o primeiro marido de Zulmira. No dia em que Abu Zhakaria partira, Taxfin vira-a caminhar para lá, um pouco antes de o grupo se fazer à estrada. Rezou para que estivesse escondida, e que depois o sepultasse no mausoléu. O outro falou novamente. Haveis ouvido falar de Alamut? Apesar da escuridão, Taxfin reparou que o homem usava vestes claras. Lembrou-se de que ele andava sempre com uma túnica branca, apenas com um cinto vermelho, onde trazia o alfange e dois punhais». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Que diz ele?, pergunto a um oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome, responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e apreensível aos ouvidos de um bárbaro»

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O Breviário

«Outra visita temos, curiosa e invulgar. Naquelas matas espessadas que se vêem nos montes, moram nos cerros agrestes e nas brenhas densas, em grutas e covas, homens bárbaros e bestiais, tidos comummente na ilha como selvagens, pois que vivem apartados do convívio humano, jamais descem aos povoados e levam um teor de vida primitivo. Sustentam-se da caça e pelejam muitas vezes com fustas e galeotes de mouros que por ali ordinariamente acodem a roubar, de Rodes, de Escarpanto e de outros lugares vizinhos da ilha. Mostram-se contudo afáveis e dados com os venezianos, quanto ao que entendi, ou por serem estes os senhores da terra, ou porque deles necessitam quando os vêem aportar àquelas partes, ou porque lhes têm o respeito que é costume ter-se a naus tão artilhadas como as de Veneza. Nos dias que ali estivemos presenciei o cuidado e resguardo com que sai a terra a gente do serviço da nau, que quando vai buscar lenha ou água fá-lo sempre acompanhada de arcabuzeiros.

Três destes homens vêm a bordo a vender carne montesinha. Trajam samarrões sem mangas, feitos de couro cru de veado. Debaixo, uma camisa muito áspera e grosseira. Não trazem bragas, mas umas botas de pele crua de vaca, tão altas que as atacam com uma tira de couro junto da cinta. Na cabeça, de cabelos tão compridos que lhes chegam a meio das espáduas, uma espécie de carapução também de couro cru, que juntamente com lhes servir para os cobrir lhes serve ainda de arma defensiva em tempo de necessidade. Usam arco e setas, que nunca largam quando saem. Trazem perdizes, cabritos, leitões, veados. Vendem tudo tão barato que quatro perdizes custam um marcelo, que é como o nosso real de prata, e pelo mesmo preço vendem os cabritos e os leitões.

Entre estes homens vem um extremamente comunicativo e faceto, de nome Argirópolos, que com todos quer zombar e gracejar, faz todo o possível por dar fé de quanto há na nau, andando de coberta em coberta, abaixo e a cima, e, ainda que alguns o convidam a que pouse o arco e as setas, ninguém o consegue. Passando junto de mim atenta no meu breviário que, por suas capas de carneira castanha, cantos de prata lavrada e letras gravadas a ouro, oferta do superior de Évora ou, como eu desconfiava, de alguém por seu intermédio, aquando da minha ordenação, é diferente dos de todos os outros frades. Faz menção de o ter nas mãos, no que eu consinto, e profere algumas palavras que me parecem uma pergunta. Embora aprecie o espectáculo da sua viveza e graça, não o entendo. Não sei o grego falado. Mas entendem-no muitos passageiros gregos e os oficiais da nau, quase todos gregos. Esta falta têm as naus venezianas: o trazerem pilotos gregos, recrutados nas muitas terras e ilhas marítimas gregas de que têm o senhorio e cujos habitantes, numa tradição que vem dos tempos antigos, se dedicam à arte de navegar.

Que diz ele?, pergunto a um oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome, responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e apreensível aos ouvidos de um bárbaro. Pantaleone!, repete ele maravilhado, rebolando os olhos risonhos e despejando uma algaravia que não entendo mas que Constantino, fazendo de língua, se apressa a traduzir: Diz que Pantaleone é nome grego e que, se vós sois todo leão, sois valente como um leão e ele gosta dos homens valentes como leões. Todos se riem muito com a laracha e eu também. Ele entretanto já me andava arremedando, passeando devagar para trás e para diante, com o breviário aberto, fingindo lê-lo, mexendo os lábios, e deitando fora muitos perdigotos. Enquanto a gargalhada é geral, chega-se a mim com um ar muito composto e entrega-me o breviário dizendo: Pantaleone! Como é que de repente me vem à ideia aquela expressão latina cretenses mendaces, os Cretenses são mentirosos? Quem me havia dito que esta gente é muito doméstica, amigável e de boa conversação no exterior, mas no seu Intimo malíssima, mentirosa e traiçoeira?...

Não se esqueceram os caloiros de no domingo seguinte nos virem buscar, pela manhã, para nos levarem consigo ao seu mosteiro. Acatamento amistoso, refeição no nosso camarote. Depois de comermos juntaram-se a nós quatro fidalgos cipriotas e cinco passageiros gregos e todos juntos, com meu companheiro frei Zedilho, pedimos licença ao patrão para irmos com os caloiros ver o mosteiro. Signor Nicoló concedeu-no-la com muita cortesia. Também de boa vontade ia connosco, se o porto estivesse seguro de corsários». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,