sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Álvaro Cunhal. Retrato Pessoal e Íntimo. Adelino Cunha. «A convicção férrea e a dinâmica emocional controlada permitiram-lhe suportar as privações com a mesma determinação com que penalizou os que abriram brechas na couraça revolucionária»

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O homem e o Mito

«Á lvaro Barreirinhas Cunhal nasceu no dia 10 de Novembro de 1913 na Maternidade Daniel de Matos, em Coimbra, filho de Avelino Henriques da Costa Cunhal (1887-1966) e de Mercedes Simões Ferreira Barreirinhas (1888-1971). Morreu em Lisboa no dia 13 de Junho de 2005 com 92 anos. Foi uma das maiores figuras políticas e intelectuais do século XX português e do próprio movimento comunista internacional, mas recusou escrever uma autobiografia que ajudasse a compreender essa parte significativa da memória colectiva dos Portugueses. Um livro de memórias é, em geral, uma coisa tão aborrecida; é um dicionário de factos que uma pessoa colecciona, repetiu ao longo de décadas. Álvaro Cunhal aprendeu a controlar instintivamente os mecanismos de comunicação com as massas e aperfeiçoou o seu domínio ao longo dos anos. As entrevistas foram doseadas de forma austera, tendo em consideração a sua longevidade e relevância política, e as declarações públicas surgiram quase sempre espartilhadas para revelar somente o pretendido. O homem confundiu-se demasiadas vezes com o mito nesta névoa.

O próprio PCP aceitou o mistério biográfico em nome da aversão de Álvaro Cunhal ao culto da personalidade e sintetizou a vida do expoente máximo do comunismo português numa árida nota biográfica. Álvaro Cunhal chegou a recusar que a sua fotografia fosse utilizada nas campanhas eleitorais do PCP em nome das virtudes do colectivo sobre as individualidades. O ideal comunista estava acima dos homens porque os homens podem falhar. A História escreveu-se de outra maneira porque o PCP foi durante décadas o próprio Álvaro Cunhal, mas Álvaro Cunhal era muito mais do que apenas o PCP.

A glória não está apenas na personalidade, mas no modelo de imortalidade. Os caminhos parecem por isso conduzir para a um semideserto identitário. Interrogam-me muitas vezes sobre a minha vida. Gostaria de dizer o seguinte: a minha vida é inseparável da vida de todos os comunistas de Portugal, afirmou em 1962, ao jornal Pravda, quando a sua liderança se tornara inequívoca. Existe um texto de carácter biográfico escrito por Júlio Fogaça em 1954 para responder às regras de funcionário impostas pelo movimento comunista internacional para controlo dos Quadros. Soma-se uma nota sintética actualizada após o seu regresso de Moscovo em 1974 para ser distribuída aos jornalistas portugueses por necessidades operacionais.

Por último, está publicada uma narrativa de carácter panfletário que se tentou tornar asséptica através da publicação na União Soviética. É neste texto empenhado que se encontram alguns indícios da imagem que Álvaro Cunhal aceitava projectar de si próprio, na medida em que se assumiu como fonte directa da autora. Trata-se de um insuficiente exercício biográfico escrito por Yulia Leonidovna Petrova, neta do então líder dos comunistas russos, Nikita Khrushchev, tendo por base algumas conversas soltas com o próprio biografado. Hastes sem Bandeiras teve a sua primeira publicação em 1963 na editora Pravda, mas o PCP adiou a sua reedição em Portugal e remeteu o original para a obscuridade. A tradução de Francisco Ferreira, o celebrizado Chico da CUF, importante dissidente comunista e adversário militante de Cunhal, tornou-se na fonte secundária mais utilizada para aceder ao texto original. O exercício traduz um esforço para desmistificar alguns factos do percurso de Álvaro Cunhal e, acima de tudo, pretende constituir-se como acusação contra o herói soviético. O antigo dirigente comunista tenta desmontar a imagem de Cunhal enquanto produto de marketing da velha escola soviética especializada em construir e desconstruir os líderes comunistas internacionais.

É verdade que Álvaro Cunhal se apresentou durante um importante período da história da União Soviética como um modelo de dirigente comunista e atingiu um elevado nível de reconhecimento entre os seus correligionários internacionais. Beneficiou de um estatuto que durou largos anos e que lhe permitiu viver com tranquilidade em Moscovo e em França com o apoio directo do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e circular por todos os países socialistas com considerável liberdade de movimentos. A classe dirigente reconhecia-lhe mérito político, empenho pessoal e, acima de tudo, a necessária disciplina revolucionária. Álvaro Cunhal prescindiu de uma parte da sua vida e dos afectos para se dedicar a uma causa de inspiração transcendente que exigiu submeter-se a intensos sacrifícios físicos e psicológicos. O seu percurso tornou-se numa teologia da revolução.

A convicção férrea e a dinâmica emocional controlada permitiram-lhe suportar as privações com a mesma determinação com que penalizou os que abriram brechas na couraça revolucionária. Também revelou uma profunda intolerância e desprezo para com os dissidentes intelectuais e criticou duramente os que cederam às torturas físicas por comprometerem a segurança colectiva e a moral revolucionária. A disciplina e a fidelidade tornaram-se dogmas de comportamento. Álvaro Cunhal lutou pelas virtudes do comunismo em sintonia com as orientações do movimento comunista internacional, mas as suas convicções e o seu comportamento foram muito além da conjuntura dos líderes que foram passando pela Praça Vermelha. O projecto de sociedade global e de homem novo defendido ao longo de décadas resistiu a várias tentativas externas de destruição do PCP e dos seus dirigentes e exigiu a depuração de resistências interna que se manifestaram em vários casos com contornos de violência psicológica e física». In Adelino Cunha, Álvaro Cunhal. Retrato Pessoal e Íntimo, 2010, Saída de Emergência, 2020, ISBN 978-989-889-270-6.

 Cortesia de SaídaEmergência/JDACT

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