segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. «… a Clarisse irá lamber os lábios para não desperdiçar nenhum cristal de açúcar, a minha mãe irá desfrutar do consolo de ver-nos consolados. Caem as últimas gotas negras pelo bico do filtro, cone invertido, o eflúvio do café»

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26 de Março de 2021

«Quando entreguei o prato e o pano à minha mãe, tinha a cesta aviada com pedaços de carne acomodados em folhas de couve, pode deixar que eu falo com o meu Rui. A minha mãe explicou-me os destinatários dessas encomendas, orelha, toucinho, ossos, pés, fígado, baço. Antes de sair, passou-me a mão pelo cabelo, uma festa, como se me penteasse. Quando terminei a primeira ronda, estavam as mulheres no começo de encher as farinheiras. O cheiro avinagrado da massa das farinheiras impregnava a divisão. A seguir, com a cesta novamente carregada, as ruas de Campo Maior entardeceram, a cal recebeu diferentes amarelos, acinzentados e azuis, até cair a noite. Quando voltei da segunda ronda de distribuição, mãos agradecidas a receberem as encomendas, olhos regalados a apreciarem a carne, a textura da carne sobre a couve, a minha mãe esperava-me com a vasilha do leite, tinha essa intenção planeada desde sempre. Depois do morno do sebo e da palha, depois do olhar mal iluminado das vacas, depois das ruas, noite antes do serão, gente a voltar para casa, cheguei com o quarto de litro de leite, mais um ou dois dedos por paga de bom freguês.

Foi ao entregar a vasilha que a minha mãe me prometeu a nata. Eu conhecia já o desenvolvimento desse gesto, não era a primeira vez. Entrei em casa e sentei-me à mesa com as minhas irmãs, a pequena não estava ainda farta de brincadeira. Sopa de feijão com massa, a minha mãe sempre de pé, a ir de uma tarefa para outra, acabámos de comer em silêncio, as sombras engrossavam nos cantos. Mas a pequena estava ainda esperta, não pensava em sono, e a minha irmã Cremilde fazia-lhe a vontade, as suas vozes a desmontarem-se até serem risos e, sem esforço, a transformarem-se outra vez em vozes. Recolhida a loiça, quando fui buscar o caderno da escola e me sentei à mesa, arrumado ao candeeiro de petróleo, a minha mãe deu ordem às raparigas para irem para o quarto, não se importaram, sabiam que lá estariam mais soltas.

O carvão do lápis, no papel, sob a luz do candeeiro, penumbra, era feito de sombra, escrevi letras com sombra. O tempo, a minha mãe e eu, todos os objectos da cozinha. E, há poucos minutos, voltei a guardar o caderno, os trabalhos terminados, aptos para o olhar do professor e, imediatamente, os sons do alumínio e do esmalte, a vasilha de alumínio a verter o leite para o púcaro de esmalte. Apercebo-me ainda do momento em que arrumei o púcaro às brasas, a raspar no chão de cinzas, ao lado da cafeteira com água que está sempre encostada ao lume. Esse momento aconteceu e está ainda a acontecer, existiu o ponto em que tudo era esse momento, e existe este ponto arrastado em que é um eco, imagem desfiada, composta por notícias em que só agora reparo.

Interrompendo um raciocínio, de repente, como se me quisesse apanhar desprevenido, o leite sopra um arrufo e lança-se; mas os meus reflexos são imediatos, inclino-me e puxo o púcaro. A minha mãe dá conta deste gesto. Tem tudo preparado, abre a lata do café. Fixo-me nas minhas mãos de rapaz de nove anos, o tamanho e a forma dos dedos, as unhas, a pele da palma das mãos, os pulsos. Reparo nos meus braços, na proporção do meu corpo em relação ao que me rodeia, esta cozinha, a cozinha dos meus nove anos, reparo neste tempo, serão da minha infância, inverno, dia de semana, o meu irmão que ainda não chegou, um homem com dezasseis anos, as minhas irmãs, a Cremilde com onze e a Clarisse com sete, e o meu pai, que também ainda não chegou, o patrão não lhe concedeu anuência, mas que está em algum lugar, a respirar, a ver alguma coisa, quase de certeza a pensar em nós, quase de certeza a pensar que gostava de estar aqui.

E esta hora tão precisa, intensa, a minha mãe, resguardada pela luz e pela escuridão, o candeeiro de petróleo a aguentar todo o peso da noite. A minha mãe com a cintura envolta em nuvens, entorna a água sobre o coador. É café do melhor, trazido de Espanha pelo meu tio, é ouro. Vai preparar canecas de café com leite para as minhas irmãs e para mim, para o meu irmão mais tarde, a Clarisse irá lamber os lábios para não desperdiçar nenhum cristal de açúcar, a minha mãe irá desfrutar do consolo de ver-nos consolados. Caem as últimas gotas negras pelo bico do filtro, cone invertido, o eflúvio do café». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

 Cortesia de QuetzalE/JDACT

 JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,