terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. «Abriu os olhos, regressou ao seu corpo. Começou por virar-se devagar e, ao fazê-lo, regressou à sua idade: oitenta e nove anos, esse número. Enquanto rolava o corpo no colchão…»

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26 de Março de 2021

«Se continuasse nessa direcção, pouco tardaria para alcançar a fronteira. Ali, no sossego, os nervos da fronteira eram uma memória inofensiva, despertaram-lhe certa forma de entusiasmo ou de juventude, mas não deu o passo que ultrapassaria essa linha, regressou de repente ao discernimento do quarto, ainda o corpo na mesma posição, imóvel, deitado, interessado no morno, a madrugada.

O passado tem de provar constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar. Há muita realidade a passear-se por aí, frágil, transportada apenas por uma única pessoa. Se esse indivíduo desaparecer, toda essa realidade desaparece sem apelo, não existe meio de recuperá-la, é como se não tivesse existido. Lembrou-se do bolo seco na boca, a mastigar o bolo, a não conseguir engoli-lo, voltas e voltas na boca, um cálice de licor, a molhar a ponta dos lábios num cálice de licor, esse doce a misturar-se com a massa mastigada do bolo. O passado é enorme, é como uma montanha, e assenta inteiro sobre o presente, que é como uma agulha, como a ponta afiada de uma agulha. Uma montanha assente sobre a ponta de uma agulha, onde é que já se viu?

Imóvel, deitado, libertava frases dentro de si. Eram frases que se afastavam na escuridão, tinha tempo de observá-las, considerá-las. Talvez devido ao silêncio daquela hora, talvez devido à limpeza do jejum, eram frases que continham uma verdade solene e ardente, com alguma angústia às vezes, sobretudo no momento em que começavam a desfazer-se, a misturar-se com as coisas esquecidas, a voz a tornar-se vaporosa. A quem pertencia aquela voz? Fixou-se nela. Escutou-a com a mesma clareza com que teria escutado uma voz vinda de fora, alguém a falar-lhe. No entanto, aquela era uma voz que dizia eu e que, ao fazê-lo, se referia a ele. Quem dizia eu no seu interior? Era ele aquela voz?

Sentiu a mulher a seu lado, que nome bonito, Alice, nome de menina, e quase pensou em despertá-la, partilhar o alívio. Mas conhecia bem o seu rosto adormecido, amparou-se nele tantas vezes ao longo das décadas, rosto indefeso, confiança absoluta, Alice, vários rostos e, no entanto, sempre o mesmo. Essa lembrança, como fotografias sobrepostas, chegou-lhe à garganta, a ternura é uma forma sublime de amizade. E, ainda de olhos fechados, precisou de inspirar fundo, como se sorvesse toda a escuridão e, logo a seguir, a devolvesse à madrugada.

Abriu os olhos, regressou ao seu corpo. Começou por virar-se devagar e, ao fazê-lo, regressou à sua idade: oitenta e nove anos, esse número. Enquanto rolava o corpo no colchão, cilindro, insecto lento, tentava não acordar a mulher, ruídos de molas, juntas da cama, corrente de ar abrupta ao rés dos lençóis. Ao mesmo tempo, uma guinada na lombar, a nuca pouco articulada, os pulsos a terem de ser manobrados com prudência para não se abrirem numa luxação. E, na saída da roupa da cama, reprimiu o suspiro que a coluna aprumada e as vértebras encaixadas lhe pediram. A ponta do pé, embicada, tocou o chão». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,