O Breviário
«Outra visita temos, curiosa e
invulgar. Naquelas matas espessadas que se vêem nos montes, moram nos cerros
agrestes e nas brenhas densas, em grutas e covas, homens bárbaros e bestiais,
tidos comummente na ilha como selvagens, pois que vivem apartados do convívio
humano, jamais descem aos povoados e levam um teor de vida primitivo.
Sustentam-se da caça e pelejam muitas vezes com fustas e galeotes de mouros que
por ali ordinariamente acodem a roubar, de Rodes, de Escarpanto e de outros
lugares vizinhos da ilha. Mostram-se contudo afáveis e dados com os venezianos,
quanto ao que entendi, ou por serem estes os senhores da terra, ou porque deles
necessitam quando os vêem aportar àquelas partes, ou porque lhes têm o respeito
que é costume ter-se a naus tão artilhadas como as de Veneza. Nos dias que ali
estivemos presenciei o cuidado e resguardo com que sai a terra a gente do
serviço da nau, que quando vai buscar lenha ou água fá-lo sempre acompanhada de
arcabuzeiros.
Três destes homens vêm a bordo a
vender carne montesinha. Trajam samarrões sem mangas, feitos de couro cru de
veado. Debaixo, uma camisa muito áspera e grosseira. Não trazem bragas, mas
umas botas de pele crua de vaca, tão altas que as atacam com uma tira de couro
junto da cinta. Na cabeça, de cabelos tão compridos que lhes chegam a meio das
espáduas, uma espécie de carapução também de couro cru, que juntamente com lhes
servir para os cobrir lhes serve ainda de arma defensiva em tempo de necessidade.
Usam arco e setas, que nunca largam quando saem. Trazem perdizes, cabritos,
leitões, veados. Vendem tudo tão barato que quatro perdizes custam um marcelo,
que é como o nosso real de prata, e pelo mesmo preço vendem os cabritos e os
leitões.
Entre estes homens vem um
extremamente comunicativo e faceto, de nome Argirópolos, que com todos quer
zombar e gracejar, faz todo o possível por dar fé de quanto há na nau, andando de
coberta em coberta, abaixo e a cima, e, ainda que alguns o convidam a que pouse
o arco e as setas, ninguém o consegue. Passando junto de mim atenta no meu
breviário que, por suas capas de carneira castanha, cantos de prata lavrada e
letras gravadas a ouro, oferta do superior de Évora ou, como eu desconfiava, de
alguém por seu intermédio, aquando da minha ordenação, é diferente dos de todos
os outros frades. Faz menção de o ter nas mãos, no que eu consinto, e profere algumas
palavras que me parecem uma pergunta. Embora aprecie o espectáculo da sua
viveza e graça, não o entendo. Não sei o grego falado. Mas entendem-no muitos
passageiros gregos e os oficiais da nau, quase todos gregos. Esta falta têm as
naus venezianas: o trazerem pilotos gregos, recrutados nas muitas terras e
ilhas marítimas gregas de que têm o senhorio e cujos habitantes, numa tradição
que vem dos tempos antigos, se dedicam à arte de navegar.
Que diz ele?, pergunto a um
oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome,
responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e
apreensível aos ouvidos de um bárbaro. Pantaleone!, repete ele maravilhado,
rebolando os olhos risonhos e despejando uma algaravia que não entendo mas que Constantino,
fazendo de língua, se apressa a traduzir: Diz que Pantaleone é nome grego e
que, se vós sois todo leão, sois valente como um leão e ele gosta dos homens valentes
como leões. Todos se riem muito com a laracha e eu também. Ele entretanto já me
andava arremedando, passeando devagar para trás e para diante, com o breviário
aberto, fingindo lê-lo, mexendo os lábios, e deitando fora muitos perdigotos.
Enquanto a gargalhada é geral, chega-se a mim com um ar muito composto e
entrega-me o breviário dizendo: Pantaleone! Como é que de repente me vem à
ideia aquela expressão latina cretenses
mendaces, os Cretenses são mentirosos? Quem me havia dito que
esta gente é muito doméstica, amigável e de boa conversação no exterior, mas no
seu Intimo malíssima, mentirosa e traiçoeira?...
Não se esqueceram os caloiros de
no domingo seguinte nos virem buscar, pela manhã, para nos levarem consigo ao
seu mosteiro. Acatamento amistoso, refeição no nosso camarote. Depois de
comermos juntaram-se a nós quatro fidalgos cipriotas e cinco passageiros gregos
e todos juntos, com meu companheiro frei Zedilho, pedimos licença ao patrão
para irmos com os caloiros ver o mosteiro. Signor Nicoló concedeu-no-la com
muita cortesia. Também de boa vontade ia connosco, se o porto estivesse seguro
de corsários». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,