domingo, 31 de dezembro de 2023

No 31. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Não quereis tomar um pouco de trabalho e ir ver uma notável antiguidade que fica não muito desviada do caminho que levamos? E que antiguidade era essa? O labirinto do Minotauro. O labirinto!»

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O Breviário

«A jornada, porém, correu pacifica e com grande contentamento chegámos antes do sol-posto ao mosteiro dos caloiros, a um tiro de pedra do qual nos saiu a receber o abade rodeado de alguns dos religiosos. Com muita humildade se lançou a nossos pés pedindo-nos a bênção, como é seu costume quando se encontram com outros religiosos. Fizemos nós o mesmo pedindo-lhe a sua e abraçámo-nos uns aos outros e beijámo-nos na face, por se usar naquelas partes e em todo o Oriente, ao modo italiano. Levaram-nos, de seguida, à igreja a fazer oração. Noto então que, por distracção ou troca inconsciente, tinha trazido um breviário que não é o meu. Acabada a oração, levam-nos a uma casa a modo de hospedaria, onde os têm preparada colação com muitas tâmaras, grãos tostados e outras coisas à maneira da terra. Vendo-me em tão caritativo convite, achei ser essa uma óptima ocasião para oferecer ao abade e aos caloiros uma caixa de marmelada. Tinha-a comprado, com outra provisão, em Veneza e trazia--a metida na manga, por assim me haverem aconselhado na nau: que não fosse de mãos abanar. Provam-na, que delícia!, tornam a provar: Nunca naquelas grecianas partes, fra Pantaleone, se vira tão delicada iguaria!

Levam-nos em seguida ao pomar do mosteiro que é muito viçoso de fruta de espinho de toda a sorte, ponteando seus pomos de ouro no verde da folhagem, com cuja vista e perfume nos recriamos e tomamos alento do passado enfadamento do mar. Tornados ao mosteiro, encaminham-nos para um grande refeitório, em que haviam acendido um acolhedor fogo para quebrar o frio que, com o cair da noite, se começa a sentir.

À nossa espera uma esplêndida ceia! Sendo pobres, sua caridade não permite enxergar-se neles pobreza para connosco. À nossa mesa se senta o abade com dois caloiros velhos. Teve o cuidado, pois era Advento e sabia que, conforme nossa regra, nos guardamos nesta altura de comer carne, de mandar fazer provisão de pescado. De toda a maneira guisado nos é posto diante com as mais variadas achegas de manjares quaresmais. Numa outra mesa estão os nossos companheiros leigos, servidos de muitas espécies de carnes de que, em especial nesta quadra, é muito fértil a terra. E que bom vinho e capitoso este Cândia que nos servem e nos faz dormir a noite num repousante e restaurador sono, a mim e a frei Zedilho. É um aposento alto. Tinham-nos preparado e feito as camas, não de colchões moles e brandos, mas dos seus próprios hábitos e túnicas. Como cobertores, umas esclavinas, que são mantas brancas, grandes e feltrudas, a modo de bétnios. Fabricam-se na Esclavónia e correm por todo o Levante.

Serve-se delas a gente comum, que não tem muito de seu, mas são melhores e mais amorosas que as do nosso Alentejo, frias de Inverno e quentes de Verão.

Agasalhámo-nos, frei Zedilho e eu, o melhor que pudemos. Os companheiros gregos esses levaram a maior parte da noite a cantar e a tanger, para o que haviam trazido duas violas de arco e um alaúde. É esta gente muito inclinada à música e a passatempos, ainda que lhe falte as boas vozes do nosso Portugal.

No dia seguinte, tomada a bênção do abade, partimos do mosteiro por outro caminho, indo connosco dois caloiros para nos guiarem. Acentuou-se em mim a impressão que tivera no dia anterior de que aquela serra era uma Arrábida em ponto grande, pois a vegetação, a rescendência, a finura do ar, a leveza da água, a qualidade da caça, o azul do céu, a limpidez do mar - tudo me fazia lembrar aquela minha serra. íamos conversando destas coisas e de outras, pois não era dificil entender-nos porque toda a gente nobre das terras sujeitas a Veneza fala e compreende bem o italiano, quando um daqueles senhores gregos nos disse: Sois decerto inclinados a ver curiosidades... Não quereis tomar um pouco de trabalho e ir ver uma notável antiguidade que fica não muito desviada do caminho que levamos? E que antiguidade era essa? O labirinto do Minotauro. O labirinto! Mas que maravilha!, exclamei entusiasmado e agradecendo-lhe exuberantemente a ideia». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,