O homem e o Mito
«Cunhal
raramente hesitou quando teve de decidir sozinho ou apoiar decisões exemplares
de terceiros na defesa deste quadro mental de disciplina colectiva. A hesitação
e a dúvida não tinham lugar. Algumas das circunstâncias em que ocorreram essas correcções
continuam difíceis de confirmar pelo pacto de silêncio tácito que envolve os
intervenientes directos ou por serem de muito difícil reconstituição por
ausência de fontes credíveis. A fronteira entre os ajustes de conta s
executados no PCP e a conivência das autoridades policiais e judiciais do
Estado Novo impossibilita a verificação de alguns factos políticos que foram
tratados como crimes vulgares. A teologia da revolução e a determinação de
Álvaro Cunhal estiveram sempre acima da vontade dos homens comuns. Quem foi
este homem? Tão magro, de magreza impressionante, chupado, a face fina e
severa, as mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o cabelo, um
homem jovem mas fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas, de pouso
incerto, de responsabilidades imensas e de trabalho infatigável, eu o vejo,
sentado ao outro lado da mesa, diante de mim, falando com a sua voz um pouco
rouca, os olhos ardentes no fundo de um longo e sempre vencido cansaço, e o
vejo agora, como há cinco anos passados, sua impressionante e inesquecível
imagem: Álvaro Cunhal, conhecido por Duarte, o revolucionário português
Este
retrato delicado de Jorge Amado aproxima-se de uma certa imagem de
revolucionário romântico que o próprio Cunhal gostava de projectar de si
próprio. A austeridade física cavada pela dureza da vida clandestina e o perfil
psicológico determinado e sacralizado de um revolucionário sabedor antecipado
do caminho da História. É no romance Até Amanhã, Camaradas que Álvaro
Cunhal idealiza de forma mais impressiva nas duas principais personagens
masculinas alguns traços de carácter que podem ser identificados em si próprio e
em alguns dirigentes do PCP. Ramos tem a franqueza e o à-vontade que
quase tocam a insolência, senão fora a segurança em si mesmo. É capaz de ser
extremamente duro e exigente nas relações políticas com os outros, mas revela
sentimentos de ternura e compaixão em circunstâncias de maior intimidade. Vaz
tem um rosto severo e impassível e destaca-se pelo comportamento ríspido e
austero. É um funcionário partidário típico, que percorre o País de reunião em
reunião e na preparação da luta política, indo além dos seus próprios limites
físicos, alimentado por uma causa que o ultrapassa.
Quase
tudo em Álvaro Cunhal parece desembocar num certo mistério biográfico. As
omissões e adulterações factuais são subtis, e demasiadas vezes imperceptíveis
no processo de construção exterior de um mito. A projecção modelar da sua vida
pública e privada remete para a pureza dos santos e dos mártires. Um herói
revolucionário portador de uma energia indefectível. Eugénia Cunhal lamenta que
retratem o irmão como uma pessoa severa no trato pessoal. Considerava-o um homem
cheio de ternura e que sabia mostrá-la fazendo uma festa ou dando um beijo.
Sabendo dizer coisas do tipo maninha, como estás? Uma faceta que
mostrava com frequência à família e aos amigos. Era um homem afectuoso por
natureza.
Jorge
Amado acrescenta no seu retrato os «olhos fundos e cansados, a magreza
impressionante, o físico combalido pela dura ilegalidade, a fadiga de anos
acumulada no corpo e as mãos ossudas, mas sempre a capacidade de ter um sorriso
terno. Todo o esplendor que emana de Álvaro Cunhal representa o modelo perfeito
do revolucionário.
Há
uma preocupação permanente em construir uma ideologia de inspiração quase
religiosa que apresenta uma mensagem de esperança e de conhecimento antecipado
da História. Uma religião agnóstica com santos e mártires. Os revolucionários
que entregam a sua vida em nome dos valores colectivos. Cunhal recusava o papel
de líder individual, mas as suas acções remetiam aos olhos dos outros para esse
heroísmo de assinatura e o mistério biográfico ajudou a desenhar o avatar
revolucionário. A base do retrato físico e psíquico pincelado por Jorge Amado
decorre de um encontro em Paris. Álvaro Cunhal regressava em 1948 de uma viagem
à Jugoslávia e a Moscovo para recolocar o PCP na esfera de influência directa
da União Soviética através da reintegração no movimento comunista. Amado, autor
do primeiro romance proletário no Brasil (Cacau, 1933), estava em França
na sequência da cassação do seu mandato como deputado comunista». In Adelino
Cunha, Álvaro Cunhal. Retrato Pessoal e Íntimo, 2010, Saída de Emergência,
2020, ISBN 978-989-889-270-6.
Cortesia de SaídaEmergência/JDACT
JDACT, Álvaro Cunhal, Comunismo Internacional, PCP, Literatura, Adelino Cunha, Cultura, Conhecimento, O Saber,