1099. Junho. Fora dos portões de Jerusalém
«A conduta dos vitoriosos sobre
os vencidos dependia muito de quem estava no comando de que exército, e as
atrocidades, como em qualquer guerra, tornaram-se uma prática normal, a
justaposição de extrema voolência e fé angustiada. O ar de repulsa de alguns
cruzados estava empalado no cheiro a depravação dos restantes, mas o mesmo se
aplicava aos árabes, que massacraram todos oscativos que haviam mantido
prisioneiros dentro de uma mesquita.
Uma semana depois de a adrenalina
da guerra diminuir, a 22 de Julho, o dia de Maria Madalena, realizou-se um
conselho no interior refrescante da Igreja do Santo Sepulcro, para deliberar
sobre a eleição de um rei para Jerusalém. De entre os líderes cujos nomes foram
sugeridos, destacava-se um, pela antiguidade: o conde Raimundo de Toulouse,
muito admirado como combatente e o primeiro a voluntariar-se para a cruzada
naquele fatídico dia de Novembro em Clermont. Mas, no fim, os votos foram
atribuídos ao homem que não procurara nenhuns.
Pelos próprios actos, Godofredo
de Bulhão revelara-se valoroso, discreto, digno e modesto. Os seus servos, em
privado, atestaram a sua posse das virtudes que são postas em prática sem
qualquer exibição. Os seus ideais para o homem comum impressionaram até os
xeques árabes, que se admiraram com a modéstia do príncipe flamengo, pois,
quando foram levar oferendas a Godofredo, surpreenderam-se perante uma tenda
real desprovida de sedas, e o seu rei sentado num fardo de palha. Informado dos
seus comentários, Godofredo esclareceu que o homem deve lembrar-se de que é
apenas pó e ao pó voltará. Godofredo marchara até à Cidade Santa com um
princípio: libertar o Santo Sepulcro. O benefício pessoal não fora a sua motivação.
Quando lhe apresentaram o título de rei de Jerusalém, recusou-se educadamente a
ser coroado, aceitando antes o título alternativo de Advocatus Sancti Sepulchri (defensor do Santo Sepulcro)
e adoptando o termo informal princeps
(primeiro cidadão).
Como mais tarde diria, nunca
usarei uma coroa de ouro no lugar onde o Salvador do mundo foi coroado de
espinhos. Urbano II, cujas palavras tinham posto em movimento estes
acontecimentos, para o bem ou para o mal, nunca saberia dos desenvolvimentos em
Jerusalém, pois morreu duas semanas depois do fim do cerco e antes de a notícia
lhe poder chegar aos ouvidos. Entretanto, o infatigável Godofredo de Bulhão
atravessou o Portão de Sião a sul e saiu das muralhas de Jerusalém, para um
caminho que subia um pequeno declive até uma colina calcária onde, segundo a
tradição, a Virgem Maria passou para a eternidade e o seu filho fez a Última
Ceia. Neste local sagrado, Godofredo encontrou uma igreja quase em ruínas, a
Hagia Sião, a Basílica Bizantina da Assunção. O edifício dilapidado mal era
habitável, quando mais por um rei, e a sua posição para lá das muralhas protectoras
da cidade torná-la-ia difícil de defender, se e quando os exércitos árabes
voltassem. Ainda assim, Godofredo fixou aí residência. Mas não iria ali viver
sozinho, pois prontamente se lhe juntou um capítulo de cónegos de Santo
Agostinho, bem como um ícone religioso por direito próprio, Pedro, o Eremita.
Acontece que, longe de ser um
evangelista moribundo, Pedro era tido em grande estima, pois, logo após a
conquista de Jerusalém, os cruzados embarcaram noutra campanha militar e
deixaram o monge temporariamente no comando da cidade. Pedro , o Eremita, voltou eventualmente a
França para se tornar prior de uma igreja do Santo Sepulcro, que fundou antes
de entrar em retiro perto de Huy, onde também fundou um mosteiro. Os seus
contemporâneos não foram ingratos, nem esqueceram o seu contributo para os mais
puros ideais do cristianismo.
Os fiéis, moradores de Jerusalém, que, quatro ou cinco anos antes lá
tinham visto o venerável Pedro, reconhecendo nesse tempo, na mesma cidade,
aquele a quem o patriarca entregara cartas invocando o auxílio dos príncipes do
Ocidente, dobraram os joelhos diante dele e prestaram-lhe os seus respeitos com
toda a humildade. Lembraram as circunstâncias da sua primeira viagem; e
louvaram o Senhor que o dotara de um efectivo poder de discurso e da força de
despertar nações e reis para suportar tantos e tão longos trabalhos por amor ao nome de Cristo.
Tanto em privado como em público, todos os fiéis de Jerusalém se esforçaram por
prestar a Pedro, o
Eremita , as mais elevadas honras, e atribuíram-lhe
a ele apenas, depois de Deus, a sua felicidade por terem escapado à dura servidão
sob a qual durante tantos anos haviam gemido, e em ver a Cidade Santa recuperar
a sua antiga liberdade. Godofredo de Bulhão». In
Freddy Silva, Portugal. A Primeira Nação Templária, 2017, Alma dos Livros,
2018, ISBN 978-989-890-700-4.
Cortesia de EAlmadosLivros/JDACT
JDACT, Freddy Silva, Cultura, Conhecimento, Saber, Narrativa,