Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos
«Se
não atendermos a estes pressupostos, não se compreendem, nem sequer no seu
verdadeiro sentido, todas as discussões sobre as relações entre a Fé e a Razão
ou sobre as demonstrações racionais das verdades de fé, e seria erro grave comparar
o chamado racionalismo medieval com o racionalismo moderno.
A
Idade Média tinha um sentido da beleza e da arte diferente do nosso. Não associava directamente a arte e o belo, como
fazemos hoje. O belo era uma propriedade da natureza, do mundo e, naturalmente,
de Deus, e muitos autores medievais discutem demoradamente e com grande finura
os critérios da beleza (bem como os mecanismos psicológicos que a tornam perceptível
e apreciável). Mas, para o medieval, a arte era simplesmente uma técnica, a capacidade
de fazer bem os objectos segundo as regras: a construção de barcos era uma arte
como a pintura ou a escultura, e um produto de arte só podia ser considerado
belo se correspondesse à função para que se destinava. Portanto, uma vez que se
achava possível representar de um modo belo o feio, o disforme e o mal,
a relação da arte com a moral era, para o medieval, diferente da nossa.
Naturalmente, e estamos de novo perante as contínuas contradições
internas da vida destes séculos, as opiniões do teólogo e do poeta eram
diferentes, e em especial se o poeta era um clérigo itinerante que não
desdenhava de ao longo do caminho ter relações afectuosas com uma pastorinha,
de quem cantaria as graças poeticamente.
Existia uma distinção entre artes liberais, entre as quais, além da lógica e da retórica,
figurava a poesia, e artes servis,
em que se utilizava as mãos, e onde se incluíam a pintura e a escultura.
Por isso, não conhecemos os nomes de muitos escultores do período românico, de muitos
mestres que conceberam e construíram as grandes catedrais e de muitos
miniaturistas; e só na Idade Média madura os nomes de alguns artistas se tornam
míticos e exemplares, como no caso de Giotto. Diferente é, porém, a situação
nas artes liberais, de que conhecemos os nomes dos poetas provençais e dos
autores dos romances de cavalaria, para não falar da elevadíssima consciência
de si que tinha um poeta como Dante.
À maneira de conclusão
Embora possa parecer fácil dizer o que a Idade Média não é e o que
dela ainda hoje usamos, a exposição das diferenças que nos separam daqueles séculos
poderia prolongar-se longamente; atendendo, contudo, às muitíssimas diferenças
que nos separam dos decénios tão recentes em que os nossos pais viveram, este
problema não deve perturbar-nos. Com efeito, aquele período era sempre
diferente, até de si mesmo, com a ressalva de que procurava não o dizer. A
nossa época moderna gosta de pôr em cena as suas contradições, mas a Idade Média
sempre tendeu a ocultá-las. Todo o pensamento medieval deseja exprimir uma situação
óptima e pretende ver o mundo com os olhos de Deus, mas é difícil conciliar os tratados
de teologia com as páginas dos místicos, a arrebatada paixão de Heloísa, as perversões
de Gilles de Rais, o adultério de Isolda, a ferocidade de frei Dolcino e dos
seus perseguidores, os goliardos e as suas poesias que cantavam o livre prazer
dos sentidos, o Carnaval, a Festa dos Loucos, a alegre assuada popular que
escarnece publicamente os bispos, os textos sagrados e a liturgia e os paródia.
Lemos os textos dos manuscritos que fornecem uma imagem ordenada do mundo, e não
compreendemos como podia admitir-se que as suas margens fossem ornadas com
imagens em que se via o mundo de cabeça para baixo e macaquinhos com vestes
episcopais.
Sabia-se perfeitamente o que era o bem e recomendava-se o bem,
mas, confiando na indulgência divina, aceitava-se que a vida fosse outra coisa.
No fundo, a Idade Média virava do avesso o dito de Marcial: Lasciva est nobis vita, pagina proba.
É uma civilização que da crueldade, da luxúria e da impiedade fazia um espectáculo
público e ao mesmo tempo vivia segundo um ritual de devoção, crendo firmemente
em Deus, nos seus prémios e nos seus castigos e almejando ideais morais
candidamente infringidos». In Umberto Eco,
Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011,
ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,