segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

A Mão de Fátima. Ildefonso Falcones. «Após o cordeiro com alcachofra-brava, Zahara, sua meia-irmã de onze anos, trouxe uma bandeja de uvas-passas, mas Hernando nem sequer teve tempo de levar algumas à boca»

jdact

«Apesar de que a ideia de a moça ter sido violentada por um sacerdote cristão lhe repugnasse, Brahim aceitou o trato e a levou consigo para Juviles. Mas, contra os desejos de Brahim, Hernando nasceu forte e com os olhos azuis do padre que havia violado sua mãe. Também sobreviveu à infância. As circunstâncias de suas origens correram de boca em boca, e, embora o povo se tivesse apiedado da moça violada, não sucedeu o mesmo com o fruto ilegítimo do estupro; aquele desprezo foi crescendo ao ver-se a atenção que dedicavam ao garoto o padre Martín e Andrés, maiores até que as que concediam às crianças cristãs, como se quisessem salvar da influência dos seguidores de Maomé o bastardo de um sacerdote.

O meio sorriso com que Hernando entregou as azeitonas à mãe não conseguiu enganá-la. Ela lhe acariciou o cabelo com doçura, como fazia sempre que pressentia sua tristeza, e ele, mesmo na presença de seus quatro meios-irmãos, a deixou fazer: eram poucas as ocasiões em que sua mãe podia demonstrar-lhe carinho, e todas, sem excepção, se davam na ausência de seu padrasto.

Brahim se havia somado sem hesitar à rejeição da comunidade mourisca; seu ódio pelo nazareno de olhos azuis, o favorito dos sacerdotes cristãos, havia recrudescido à medida que Aisha, sua mulher, dava à luz seus filhos legítimos. Aos nove anos, ele foi desterrado para o telheiro, com as mulas, e só comia dentro de casa quando o padrasto estava fora. Aisha teve de ceder aos desejos do marido, e a relação entre mãe e filho se dava através de gestos subtis carregados de significado.

Naquele dia, o almoço estava preparado, e seus quatro meios-irmãos esperavam sua chegada. Até o menor deles, Musa, de quatro anos, mostrava um semblante duro diante de sua presença. Em nome de Deus, clemente e misericordioso, rezou Hernando antes de sentar-se no chão. O pequeno Musa e seu irmão Aquil, três anos mais velho, o imitaram, e os três começaram a pegar com os dedos, directamente da caçarola, os pedaços da comida que sua mãe havia preparado: cordeiro com alcachofra brava cozinhados com azeite, menta e coentro, açafrão e vinagre.

Hernando desviou o olhar para a mãe, que os observava encostada numa das paredes da pequena e limpa peça que usavam como cozinha, sala de jantar e quarto provisório de seus meios-irmãos. Raissa e Zahara, suas duas meias-irmãs, achavam-se em pé junto a ela, à espera de que os homens terminassem de comer para poderem fazê-lo elas por sua vez. Ele mastigou um pedaço de cordeiro e sorriu para a mãe.

Após o cordeiro com alcachofra-brava, Zahara, sua meia-irmã de onze anos, trouxe uma bandeja de uvas-passas, mas Hernando nem sequer teve tempo de levar algumas à boca: um som de cascos abafado, distante, o obrigou a levantar a cabeça. Seus meios-irmãos perceberam o gesto e deixaram de comer, atentos à sua atitude; nenhum dos dois tinha capacidade de prever com tanta antecipação a chegada das mulas.

A Velha!, gritou o pequeno Musa quando o som da mula se tornou perceptível para todos. Hernando apertou os lábios antes de virar-se para a mãe. Eram os cascos da Velha, parecia confirmar ela com o olhar. Depois ele tentou sorrir, mas a expressão ficou num esgar triste, similar ao que esboçava Aisha: Brahim estava voltando para casa.

Louvado seja Deus, rezou para dar fim à refeição e levantar-se com aborrecimento.

Lá fora, a Velha, magra, seca, repleta de mataduras e livre de qualquer arreio, o esperava pacientemente. Venha, Velha, ordenou-lhe Hernando, e com ela se dirigiu para o telheiro.

O irregular som dos pequenos cascos do animal o acompanhou enquanto rodeava a casa. Uma vez no interior do telheiro, jogou-lhe um pouco de palha e acariciou-lhe o pescoço com carinho.

Como foi a viagem?, sussurrou-lhe enquanto examinava uma nova matadura, que não tinha antes de partir». In Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, 2010, Bertrand Editorial, Grandes Romances, 2010, ISBN 978-972-252-226-7.

Cortesia de Bertrand E/JDACT

 JDACT, Ildefonso Falcones, Conhecimento, Literatura, Religião,