À maneira de conclusão
«No plano teórico, a Idade Média combatia o dualismo maniqueu e, teoricamente,
excluía o mal do plano da criação. Mas, como o praticava e, em qualquer caso, o
experimentava no dia a dia, tinha de entrar em compromisso com a sua presença acidental.
Por isso até os monstros e os caprichos da natureza eram tidos por belos, pois
estavam inseridos na sinfonia da criação do mesmo modo que as pausas e os
silêncios que, exaltando a beleza dos sons, faziam deles emergir, por
contraste, os aspetos positivos. Deste modo, era a época, e não o indivíduo
isolado, que dava a impressão de estar em paz consigo mesma.
Mas agrada-nos terminar estas páginas com, pelo menos, uma das
representações que a cultura medieval, na sua distância em relação a nós, tem
sempre capacidade de repor fazendo-nos acreditar que tratava dos nossos
problemas.
O autor é Tomás de Aquino, santo e doutor da Igreja. Se lhe
perguntassem se era permitido abortar, responderia que não, evidentemente. E do
mesmo modo responderia que não se lhe perguntassem se o mundo era eterno: era a
terrível heresia averroísta, e também a nós nos parece que um mundo eterno é
uma hipótese de absoluto materialismo. O cristão sabe pela sua fé que o mundo
foi criado por Deus, mas por outro lado Tomás de Aquino tinha elaborado cinco
maneiras de demonstrar que a fé num Deus criador não repugnava à Razão, antes
era por ela confirmada. No entanto, quer na sua Summa contra Gentiles quer no seu opúsculo De Æternitate Mundi, Tomás
apercebe-se de que não há argumentos racionais válidos para demonstrar que o
mundo não é eterno. Mas, como acredita pela fé que o mundo foi criado
por Deus, argumenta com vertiginosa subtileza para provar que a eternidade do
mundo (co-eterno com Deus) não contradiz que seja um acto criador da vontade
divina.
Perante o problema da origem da vida, Tomás comportava-se com a
mesma adamantina honestidade (sem, provavelmente, se interrogar quanto à
importância do tema nas polémicas sobre o aborto). A discussão era antiquíssima
e surgira com Orígenes, que afirmava que Deus criara as almas humanas logo nas
origens. Esta opinião fora imediatamente contestada, e até à luz da expressão
do Génesis (2,7) segundo a qual o Senhor formou o homem com a poeira do chão, instilou-lhe
no nariz um hálito de vida e o homem tornou-se uma alma viva. Portanto, segundo
a Bíblia, Deus cria primeiro o corpo e insufla-lhe depois a alma. Mas esta
posição suscitava problemas com a transmissão do pecado original. Tertuliano
defendia que a alma do pai se transmite de pai para filho pelo sémen. Posição
logo julgada herética, porque presumia uma origem material da alma.
Quem se via embaraçado era Santo Agostinho, que tinha de enfrentar
os pelagianos, que negavam a transmissão do pecado original. Por isso, ele
apoiava, por um lado, a doutrina criacionista (contra o traducianismo corporal)
e, por outro, admitia uma espécie de traducianismo espiritual. Mas todos os
comentadores acham bastante contorcida a sua posição. Tomás de Aquino será
decididamente criacionista e resolverá a questão da culpa original de um modo
muito elegante. O pecado original é transmitido pelo sémen como uma infecção
natural. (Summa Theologica, I-II,
81,1), mas isso nada tem que ver com a transmissão da alma racional. A alma
é criada porque não pode depender da matéria corporal.
Recordemos que, segundo a tradição aristotélica, Tomás entende que
os vegetais têm alma vegetativa, que nos animais é absorvida pela alma
sensitiva, enquanto nos seres humanos estas duas funções são absorvidas pela
alma racional, que torna o homem dotado de inteligência e, portanto, de alma no
sentido cristão do termo». ». In Umberto Eco,
Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote,
2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,