«Afoitava-me eu, de vez em quando, a rastejar até à escada que dá para o convés e, embora a portinhola estivesse fechada por mor da água não entrar, espreitava pelas frestas o que ia lá fora. As ondas varriam o barco vergastando-o ruidosamente de um bordo ao outro e ora subiam tão alto que nos parecia estarmos no profundo, vendo-nos de todos os lados cercados delas como de muros, e logo se abriam até aos abismos, perturbado o nosso entendimento. Três dias com suas noites nos durou esta cruel tormenta e todo este tempo andámos pairando ao mar, fugindo da terra sem no entanto a perdermos de vista e procurando tomar porto em qualquer sítio da ilha sem o conseguirmos, porque o não havia naquela parte e a força do vento contrário, que zunia e chorava no cordame, não consentia que o fôssemos procurar a outro lado. Andando assim com tanto trabalho e perigo, esperando a misericórdia divina que continuamente ínvocávamos com todas as veras das nossas almas, ao tempo que parecia querer a tempestade abonançar quebrou-se-nos o traquete da gávea.
Causou-nos
o acidente grande temor, logo acrescentado por um estranho ruído, como de um
sorver gigantesco acompanhado de angustiados suspiros, silvos e uma espécie de
mugido, e tanto mais estranho quanto os balanços da nau haviam sossegado. Abri
a portinhola e saí ao convés, acompanhado já timidamente por alguns companheiros.
Seguimos o olhar dos marinheiros, que especados tinham um ar de espanto. O céu
começava a limpar-se de nuvens que corriam ao longe, desfazendo-se, mas não
muito afastado do barco passava-se um extraordinário fenómeno. De uma nuvem escura
e carregada que pairava nos ares saía um como fino cano de vapor que rodopiava
em si mesmo e, ondulando como uma cobra pelo espaço, vinha pousar nas ondas e
delas, com aquele fragoroso ruído e resfolegar, chupava a água do mar. Parecia animado
de uma misteriosa vida e consciência, e o pavor que infundia era tal que muita
gente começou a gritar. Um dragão ! Um dragão!, exclamavam alguns tripulantes
de nação grega, enquanto os nossos franciscanos, que eram moços muito novos e
inexperientes, cheios de terror, de olhos esbugalhados, abraçados uns aos
outros não sabiam coisa que dizer senão: O demónio! É o demónio!
(Sífonas!), murmurava calmo a meu
lado um oficial de bordo, ao mesmo tempo que alguns peregrinos latinos (um monstro!,
um monstro!), bradavam em alta gritaria. O que quer que fosse, um fenómeno físico,
sem dúvida, continuava a beber a grandes tragos nas ondas do oceano, a engrossar
olhos vistos e, de transparente que a principio era, a tornar-se negro e a
tornar mais negra a nuvem que em cima engordava. Que quer dizer sífonas?, perguntei
eu ao oficial, depois de procurar com os olhos a ver se via Pérides e não o encontrando.
Sífonas quer dizer sifão, cano
que chupa água. É um fenómeno atmosférico muito frequente nestes mares e de que
já os antigos gregos, Aristóteles nos seus Meteoros, Arato-falavam. Chamavam-lhe antigamente (síphon).
A tromba marítima!. traduzi eu, recordando leituras de recentes relatos
portugueses sobre as coisas do mar. É perigoso? Por vezes é, e a embarcação
pode correr grave risco. Há casos em que se tenta cortar o cano a tiro de
canhão, mas quase sempre sem efeito. No caso presente parece que não vai haver
novidade». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,