sábado, 23 de dezembro de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… os seus versos à Zulmira. É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador, ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as rosas»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«Alamut... A lenda era antiga, Taxfin já a escutara na boca dos que haviam visitado a Pérsia. Cinquenta anos antes, um homem sábio tomara conta de um castelo inexpugnável, construído no topo de um monte íngreme, onde só se chegava por uma das encostas. O Ninho da Águia, como chamavam ao castelo de Alamut, ficava numa região montanhosa no extremo norte da Pérsia. O homem que durante décadas ali reinara tinha por nome Hassan-Ibn-Sabbah, e criara uma legião de seguidores islâmicos. Chamavam-lhe o Velho da Montanha, e a sua fama sanguinária espalhara-se.

Foi ele quem me treinou,  revelou a Morte com Duas Pernas. Aos dez anos, fora retirado aos pais e entregue em Alamut, como acontecia a muitos rapazes na região. Ali conhecera o líder espiritual e fora educado com a leitura dos textos sagrados do Corão. Éramos os seus filhos queridos e todos o amávamos. Hassan-Ibn-Sabbah treinava-os não só para serem dedicados muçulmanos, mas também para se tornarem guerreiros extraordinários, uma cavalaria espiritual para seu uso exclusivo. Selecionava os mais hábeis e formou um pequeno grupo de leais soldados, os fedayin, que davam a vida por ele e pelo Corão.

Se nos mandasse atirar de um penhasco, assim fazíamos. Vários morreram à minha frente, e a sua alma foi ter com as setenta virgens que por nós esperam no céu, contou o fedayin. Com o tempo, a seita de Alamut tornou-se perigosa para os seus vizinhos e o califa de Bagdad decidiu destruí-la. Porém, Hassan-Ibn-Sabbah era um génio e começou a usar tácticas até aí nunca tentadas. O Velho da Montanha enviava fedayin para as cortes dos inimigos, para matarem alguém, e cumprido o seu dever matarem-se também. As pessoas começaram a chamar-lhes haschischins ou assassins, pois eram certeiros e letais. Quem Hassan-Ibn-Sabbath declarasse que devia morrer era morto por um seu leal servidor. Depois, o assassin matava-se, para não ser preso.

Taxfin mantinha-se em silêncio. A Morte com Duas Pernas nunca deixara ninguém com vida, degolava todos os seus opositores. Contudo, nunca se matara, ao contrário do que dizia ter acontecido aos seus colegas de Alamut. Um dia fui escolhido por Hassan-Ibn-Sabbath para uma missão muito perigosa e longínqua, no Egipto. E cumpri-a, matando quem ele me ordenara. Mas não me matei como os outros fedayin. O homem riu-se para si próprio, emitindo um som maligno, como se estivesse possuído por um demónio. Depois, acrescentou: Já sabia o que ia acontecer em Alamut. Nem um homem santo e glorioso consegue enganar a morte, explicou o fedayin. Nenhum dos seguidores e sucessores de Hassan-Ibn-Sabbath conseguiu manter a união, e pouco a pouco os valorosos fedayin foram partindo. Apesar de bons religiosos e bons guerreiros, muitos perderam a fé, outros a capacidade de lutar. Sem Hassan-Ibn-Sabbath para iluminar as suas almas, apagaram-se na escuridão dos tempos.

Fui o único que prossegui o destino em que me iniciaram. Do Egipto, partira à procura de quem pagasse os seus serviços. Sabia matar muito bem, mas só no califado almorávida encontrara alguém que o compreendera. Ali Yusuf acolheu-me, disse o fedayin. Há quase uma década que aquele carniceiro matava para o califa de Marraquexe, e Taxfin suspirou de novo. A perna doía-lhe, mexeu-se um pouco na cama. Depois, perguntou: É verdade o que dizem dos fedayin, que fumam muito haxixe antes de matarem, para terem mais coragem? O outro respondeu a Taxfin com uma pergunta: Queres fumar haxixe antes de morrer? O marido de Zulmira disse que sim e então o persa atirou-lhe um saco e um cachimbo e Taxfin encheu-o. Depois, perguntou: Como o acendo? Pela primeira vez, o homem mexeu-se e dirigiu-se à lareira. Taxfin viu-o apanhar carvão em brasa com uma pinça de ferro. Depois, aproximou-se da cama e estendeu-lhe a pinça, e Taxfin acendeu o cachimbo nela. Deu umas passas, saboreando o fumo. Sabia bem, era haxixe de Marrocos. Uma onda de nostalgia invadiu-o. Sabes, disse ao homem, fumei muito haxixe aqui, em Hisn Abi Cherif, com alguns dos maiores poetas da Andaluzia a declamarem os seus versos à Zulmira. É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador, ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as rosas».  In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,