«Se um muçulmano está combatendo ou se encontra em zona pagã, não tem obrigação de mostrar uma aparência diferente da dos que o cercam. Nestas circunstâncias, o muçulmano pode preferir ou ser obrigado a se parecer com eles, com a condição de sua atitude supor um bem religioso, como pregar-lhes, ficar sabendo de segredos e transmiti-los a muçulmanos, evitar um dano ou algum outro fim de proveito». In Ahmad Ibn Taymiya [(1263-1328), famoso jurista árabe]
Juviles, as Alpujarras, reino de
Granada. Domingo, 12 de Dezembro de 1568
«O soar do sino que chamava para
a missa maior das dez da manhã rompeu a gélida atmosfera que envolvia aquele
pequeno povoado, situado num dos muitos contrafortes de Sierra Nevada; seus
ecos metálicos se perdiam despenhadeiro abaixo, como se quisessem despedaçar-se
contra as fraldas da Contraviesa, a cadeia montanhosa que, pelo sul, encerra o
fértil vale percorrido pelos rios Guadalfeo, Adra e Andarax, todos eles regados
por uma infinidade de afluentes que descem dos picos nevados. Para além da
Contraviesa, as terras das Alpujarras se estendem até ao mar Mediterrâneo. Sob
o tímido sol de Inverno, cerca de duzentos homens, mulheres e crianças, a
maioria arrastando os pés, quase todos em silêncio, dirigiram-se para a igreja
e se reuniram às suas portas.
O templo, de pedra ocre e carente
de qualquer adorno exterior, constava de um único e simples corpo rectangular,
num de cujos lados se erguia a rija torre que alojava o sino. Junto à
construção, se abria uma praça sobre as intrincadas canhadas que desciam para o
vale vindas da Sierra Nevada. Da praça, em direcção à serra, nasciam estreitas
ruelas margeadas por uma multidão de casas recobertas de ardósia pulverizada:
moradas de um ou dois andares, de portas e janelas muito pequenas, coberturas
planas e chaminés redondas coroadas por uma carapaça em forma de seta.
Dispostos sobre os terrados, pimentões, figos e uvas secavam ao sol. As ruas
escalavam sinuosamente as encostas da montanha, de forma que os terrados das de
baixo alcançavam os alicerces das superiores, como se se erguessem umas sobre
as outras.
Na praça, diante das portas da
igreja, um grupo formado por algumas crianças e vários cristãos-velhos da vintena
que vivia no povoado observava uma anciã no alto de uma escada que estava
apoiada na fachada principal do templo. A mulher tiritava e rangia os poucos dentes
que lhe restavam. Os mouriscos iam para a igreja sem desviar o olhar de sua
irmã na fé, que estava encarapitada ali desde o amanhecer, aferrada à última barra,
suportando sem casaco o frio do Inverno. O sino repicava, e uma das crianças
apontou para a mulher, que tremia ao som das badaladas, tentando manter o equilíbrio.
Risos romperam o silêncio. Bruxa!, ouviu-se entre as gargalhadas. Algumas
pedradas acertaram no corpo da velha, ao mesmo tempo que a base da escada se
enchia de más-palavras e/ou palavrões.
Terminou o repicar do sino; os
cristãos que ainda estavam do lado de fora se apressaram a entrar na igreja. Em
seu interior, a poucos passos do altar e de frente para os fiéis, um
homenzarrão moreno e curtido pelo sol permanecia de joelhos sem capa nem
casaco, com uma corda ao pescoço e os braços em cruz: segurava um círio aceso
em cada mão.
Dias antes, aquele mesmo homem
havia entregado à velha da escada a camisa de sua mulher doente para que a
lavasse numa fonte cujas águas, dizia-se, tinham poderes curativos. Naquela
fontezinha natural, oculta entre as rochas e a espessa vegetação da fragosa
serra, jamais se lavava a roupa. O padre Martín, o cura do povoado, surpreendeu
a mulher enquanto lavava essa única camisa e não duvidou de que se tentava
algum sortilégio. O castigo não demorou a chegar: a velha iria passar a manhã
de domingo no alto da escada, exposta ao escárnio público. O ingénuo mourisco
que havia solicitado o encantamento foi condenado a fazer penitência enquanto
assistia à missa de joelhos, e dessa maneira podiam contemplá-lo então os ali
presentes.
Assim que entraram no templo, os
homens se separaram de suas mulheres, e estas, com suas filhas, ocuparam as fileiras
da frente. O penitente ajoelhado tinha o olhar perdido. Todas o conheciam: era
um bom homem; cuidava de suas terras e das poucas vacas que possuía. Só
pretendia ajudar sua mulher doente! Pouco a pouco os homens se puseram,
ordenadamente, atrás das mulheres. No momento em que todos já haviam ocupado seus
lugares, chegaram ao altar o padre
Martín, o beneficiado Salvador e Andrés, o sacristão. O padre Martín,
barrigudo, de tez muito branca e faces rosadas, usando uma casula de seda
bordada em ouro, acomodou-se numa cadeira diante dos fiéis. Em pé, um de cada
lado, postaram-se o beneficiado e o sacristão. Alguém fechou as portas da
igreja; cessou a corrente, e as chamas das lâmpadas deixaram de tremeluzir. O colorido
artesoado mudéjar do tecto da igreja brilhou então, competindo com os sóbrios e
trágicos retábulos do altar e com os laterais. O sacristão, um jovem alto,
vestido de negro, magro e de tez morena, como a grande maioria dos fiéis, abriu
um livro e pigarreou. Francisco Aguazil, leu. Presente. Após verificar de onde
vinha a resposta, o sacristão anotou algo no livro. José Almer. Presente. Outra
anotação. Milagros García, María Ambroz... As chamadas eram respondidas com um
presente que, à medida que Andrés dizia a lista, soava cada vez mais parecido
com um grunhido. O sacristão continuou verificando rostos e tomando nota». In
Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, 2010, Bertrand Editorial, Grandes
Romances, 2010, ISBN 978-972-252,226-7.
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