sábado, 9 de dezembro de 2023

A Mão de Fátima. Ildefonso Falcones. «Terminou o repicar do sino; os cristãos que ainda estavam do lado de fora se apressaram a entrar na igreja. Em seu interior, a poucos passos do altar e de frente para os fiéis, um homenzarrão moreno e curtido pelo sol permanecia de joelhos…»

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«Se um muçulmano está combatendo ou se encontra em zona pagã, não tem obrigação de mostrar uma aparência diferente da dos que o cercam. Nestas circunstâncias, o muçulmano pode preferir ou ser obrigado a se  parecer com eles, com a condição de sua atitude supor um bem religioso, como pregar-lhes, ficar sabendo de segredos e transmiti-los a muçulmanos, evitar um dano ou algum outro fim de proveito». In Ahmad Ibn Taymiya [(1263-1328), famoso jurista árabe]

Juviles, as Alpujarras, reino de Granada. Domingo, 12 de Dezembro de 1568

«O soar do sino que chamava para a missa maior das dez da manhã rompeu a gélida atmosfera que envolvia aquele pequeno povoado, situado num dos muitos contrafortes de Sierra Nevada; seus ecos metálicos se perdiam despenhadeiro abaixo, como se quisessem despedaçar-se contra as fraldas da Contraviesa, a cadeia montanhosa que, pelo sul, encerra o fértil vale percorrido pelos rios Guadalfeo, Adra e Andarax, todos eles regados por uma infinidade de afluentes que descem dos picos nevados. Para além da Contraviesa, as terras das Alpujarras se estendem até ao mar Mediterrâneo. Sob o tímido sol de Inverno, cerca de duzentos homens, mulheres e crianças, a maioria arrastando os pés, quase todos em silêncio, dirigiram-se para a igreja e se reuniram às suas portas.

O templo, de pedra ocre e carente de qualquer adorno exterior, constava de um único e simples corpo rectangular, num de cujos lados se erguia a rija torre que alojava o sino. Junto à construção, se abria uma praça sobre as intrincadas canhadas que desciam para o vale vindas da Sierra Nevada. Da praça, em direcção à serra, nasciam estreitas ruelas margeadas por uma multidão de casas recobertas de ardósia pulverizada: moradas de um ou dois andares, de portas e janelas muito pequenas, coberturas planas e chaminés redondas coroadas por uma carapaça em forma de seta. Dispostos sobre os terrados, pimentões, figos e uvas secavam ao sol. As ruas escalavam sinuosamente as encostas da montanha, de forma que os terrados das de baixo alcançavam os alicerces das superiores, como se se erguessem umas sobre as outras.

Na praça, diante das portas da igreja, um grupo formado por algumas crianças e vários cristãos-velhos da vintena que vivia no povoado observava uma anciã no alto de uma escada que estava apoiada na fachada principal do templo. A mulher tiritava e rangia os poucos dentes que lhe restavam. Os mouriscos iam para a igreja sem desviar o olhar de sua irmã na fé, que estava encarapitada ali desde o amanhecer, aferrada à última barra, suportando sem casaco o frio do Inverno. O sino repicava, e uma das crianças apontou para a mulher, que tremia ao som das badaladas, tentando manter o equilíbrio. Risos romperam o silêncio. Bruxa!, ouviu-se entre as gargalhadas. Algumas pedradas acertaram no corpo da velha, ao mesmo tempo que a base da escada se enchia de más-palavras e/ou palavrões.

Terminou o repicar do sino; os cristãos que ainda estavam do lado de fora se apressaram a entrar na igreja. Em seu interior, a poucos passos do altar e de frente para os fiéis, um homenzarrão moreno e curtido pelo sol permanecia de joelhos sem capa nem casaco, com uma corda ao pescoço e os braços em cruz: segurava um círio aceso em cada mão.

Dias antes, aquele mesmo homem havia entregado à velha da escada a camisa de sua mulher doente para que a lavasse numa fonte cujas águas, dizia-se, tinham poderes curativos. Naquela fontezinha natural, oculta entre as rochas e a espessa vegetação da fragosa serra, jamais se lavava a roupa. O padre Martín, o cura do povoado, surpreendeu a mulher enquanto lavava essa única camisa e não duvidou de que se tentava algum sortilégio. O castigo não demorou a chegar: a velha iria passar a manhã de domingo no alto da escada, exposta ao escárnio público. O ingénuo mourisco que havia solicitado o encantamento foi condenado a fazer penitência enquanto assistia à missa de joelhos, e dessa maneira podiam contemplá-lo então os ali presentes.

Assim que entraram no templo, os homens se separaram de suas mulheres, e estas, com suas filhas, ocuparam as fileiras da frente. O penitente ajoelhado tinha o olhar perdido. Todas o conheciam: era um bom homem; cuidava de suas terras e das poucas vacas que possuía. Só pretendia ajudar sua mulher doente! Pouco a pouco os homens se puseram, ordenadamente, atrás das mulheres. No momento em que todos já haviam ocupado seus  lugares, chegaram ao altar o padre Martín, o beneficiado Salvador e Andrés, o sacristão. O padre Martín, barrigudo, de tez muito branca e faces rosadas, usando uma casula de seda bordada em ouro, acomodou-se numa cadeira diante dos fiéis. Em pé, um de cada lado, postaram-se o beneficiado e o sacristão. Alguém fechou as portas da igreja; cessou a corrente, e as chamas das lâmpadas deixaram de tremeluzir. O colorido artesoado mudéjar do tecto da igreja brilhou então, competindo com os sóbrios e trágicos retábulos do altar e com os laterais. O sacristão, um jovem alto, vestido de negro, magro e de tez morena, como a grande maioria dos fiéis, abriu um livro e pigarreou. Francisco Aguazil, leu. Presente. Após verificar de onde vinha a resposta, o sacristão anotou algo no livro. José Almer. Presente. Outra anotação. Milagros García, María Ambroz... As chamadas eram respondidas com um presente que, à medida que Andrés dizia a lista, soava cada vez mais parecido com um grunhido. O sacristão continuou verificando rostos e tomando nota». In Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, 2010, Bertrand Editorial, Grandes Romances, 2010, ISBN 978-972-252,226-7.

 Cortesia de Bertrand E/JDACT

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