26 de Março de 2021
«Hoje, durante toda a tarde,
atravessei Campo Maior bastas vezes. Pousei o livro da segunda classe, comi um
caldo e, logo a seguir, estava eu já disposto, encostado a dois breves minutos
de folga, em silêncio bem-comportado. A minha mãe aceitava uma encomenda, pode
deixar que eu falo com o meu Rui. Eu ali, transparente ou invisível, e a minha mãe
a falar de mim, o Rui dela. Temos carne nova na mercearia, sabes e por toda a
vila. O porco foi morto ontem e, àquela hora, já não estava pendurado de
cabeça, preso pelas patas traseiras, tinham começado a desmanchá-lo no primeiro
início da manhã, cedo, no fresco, antes ainda da minha abalada para a escola.
Pode deixar que eu falo com o meu
Rui, e falaria, mas o primeiro mandado já estava capaz de ser feito. Com solene
cerimónia, a minha mãe apresentou-me um prato de fêveras, coberto por um pano.
E tanto o prato, como o pano, como as fêveras, pertenciam à melhor selecção.
Atravessei a praça da República
e, depois, escolhi as ruas que me pareceram mais apuradas para aquele desfile.
Levava o prato à frente do peito, seguro pelas duas mãos. Em cada passada,
levantava o pé com firmeza, não arriscava sequer tropeçar numa ideia. Nesse
rigor, cruzei-me com moços da minha idade, obrigados a decorar os mesmos rios
de Angola que eu e, apesar dessa grande confiança, não nos cumprimentámos. Em
silêncio, reconhecendo gravidade, ficaram apenas a seguir-me com o olhar.
Mais perto da casa do doutor,
crescia o desejo de ver o meu pai, talvez calhasse a achá-lo entre uma tarefa e
outra, podia mesmo coincidir com a oportunidade de um passeio no carro do
patrão, do doutor, os bancos de couro, o gargalo esticado para ver a estrada
depois do capô, longa carroçaria de chapa mociça, e o meu pai, compenetrado, os
braços pousados no guiador, pronto para qualquer manobra. Mas, quase ao mesmo
tempo, logo colado a esse pensamento, o coração desengatilhava-se a bater, tipo
bombo, era o medo de encontrar o filho do doutor, medo de que andasse solto,
espírito envenenado. Fiz os últimos metros nesse suplício, como se o prato de fêveras
me puxasse a mim. Fui direito às traseiras, bati à porta da copa, chegou uma
servente de cozinha que me desenganou logo da possibilidade de ver o meu pai,
tinha acabado de sair de automóvel, tinha ido levar ou buscar a patroa, a
esposa do doutor.
À espera da devolução da loiça, a
ansiedade cresceu com a idealização do filho do doutor, rosto esgazeado que
podia saltar-me à frente. Assim que recebi o prato enxaguado, a pingar água, o
pano muito bem dobrado, quis sair dali. Nessa urgência, distingui um urro
abafado, talvez o filho do doutor, trancado em algum ponto daquele casarão, ou
no interior da minha cabeça.
As brasas, como pequenas almas. A
cinza, quase misturada com a sombra, pó de sombra. O leite, escondido na sua
cor, mas prestes a irromper de repente pelas paredes do púcaro. Tenho de evitar
essa bruteza de desperdício. Tenho também de esquivar-me aos pingos súbitos que
as barrigas dos chouriços largam, chuva muito lenta de gordura espessa, gordura
que se desfez para atravessar os poros das tripas e, depois, aquecida por este
fumo paciente, se reagrupou num pingo meloso. Não afasto o olhar do lume, estou
de guarda às chamas e ao leite, mas reconheço na pele o toque da luz do
candeeiro, o aroma tóxico e doce do petróleo queimado. O meu irmão ainda não
chegou a casa. Não se sabe a que horas o meu pai chegará, dispensado por fim pelo
doutor. As minhas irmãs continuam no quarto. Não me viro para ver a minha mãe,
mas sinto a sua presença, mãe desmedida, este é o mundo onde ela existe». In
José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,