segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Amadis de Gaula Tradução de Graça Lopes. «… gasto o que tanto do seu serviço é; e se porventura algo cá em esquecimento ficar, não ficará perante a sua real majestade, onde lhes tem aparelhado o galardão que por isso merecem»

Cortesia de wikipedia e jdact

Prólogo
«Considerando os sábios antigos, que os grandes feitos das armas deixaram em escrito, quão breve foi aquilo que com efeito verdadeiramente nelas se passou, assim como as batalhas do nosso tempo que [por] nós foram vistas nos deram clara experiência e notícia, quiseram, sobre algum cimento de verdade, compor tais e tão estranhas façanhas, com que não apenas pensaram em deixar perpétua memória aos que a elas foram afeiçoados, mas também que fossem lidas com grande admiração, como nas antigas histórias dos gregos e troianos e outros que batalharam aparece por escrito. Assim o diz Salústio, que tanto os feitos dos de Atenas foram grandes quanto os seus escritores os quiseram aumentar e exaltar. Pois se no tempo destes oradores, que mais nas cousas da fama que do interesse ocupavam os seus juízos e fatigavam os seus espíritos, acontecera aquela santa conquista que o nosso muito esforçado rei fez do reino de Granada, quantas flores, quantas rosas por eles seriam inventadas sobre ela, assim no tocante ao esforço dos cavaleiros, nas revoltas, nas escaramuças e perigosos combates e em todas as outras cousas de confrontos e trabalhos que para tal guerra se aparelharam, como nos esforçados razoamentos do grande rei aos seus altos homens nas reais tendas ajuntados, e as obedientes respostas por eles dadas e, sobretudo, os grandes elogios, os crescidos louvores que merece por haver empreendido e acabado jornada tão católica! Por certo, creio eu que tanto o verdadeiro como o fingido que por eles fosse contado na fama de tão grande príncipe, com justa causa, sobre tão largo e verdadeiro cimento, pudera tocar nas nuvens; como se pode crer que, pelos seus sábios cronistas, se lhes fora dado seguir a antiguidade daquele estilo em memória aos vindouros, por escrito teriam deixado, pondo com justa causa em maior grau de fama e alteza verdadeira os seus grandes feitos que os dos outros imperadores, que com mais afeição que verdade que os nossos rei e rainha, foram louvados; pois que tanto mais o merecem quanto é a diferença das leis que tiveram, que os primeiros serviram o mundo, que lhes deu o galardão, e os nossos o Senhor dele, que com tão conhecido amor e vontade ajudar os quis, por os achar tão dignos de porem em execução com muito trabalho e gasto o que tanto do seu serviço é; e se porventura algo cá em esquecimento ficar, não ficará perante a sua real majestade, onde lhes tem aparelhado o galardão que por isso merecem.
Outra maneira de mais conveniente crédito teve na sua história aquele grande historiador Titus Livius para exaltar a honra e a fama dos seus romanos: que afastando-os das forças corporais os chegou ao ardimento e esforço do coração; porque, se quanto ao primeiro ponto alguma dúvida se pode encontrar, no segundo não se encontraria; que, se ele por mui estremado esforço deixou em memória a ousadia daquele que queimou o próprio braço (a história de Múncio, contada por Tito Lívio), e daquele que por sua própria vontade se deitou no perigoso lago, já por nós foram vistas outras semelhantes cousas por parte daqueles que, menosprezando as vidas, quiseram receber a morte, para a outros as tirarem, de guisa que, pelo que vimos, podemos crer no que dele lemos, ainda que mui estranho nos pareça. Mas, por certo, em toda a sua grande história não se encontrará nenhum daqueles golpes espantosos, nem encontros milagrosos que nas outras histórias se encontram, como daquele forte Heitor se conta, e do famoso Aquiles, do esforçado Troilos e do valente Ajax Thalamon, e de outros muitos de que gram memória se faz, segundo a afeição daqueles que por escrito os deixaram. Bem assim como outras mais cerca de nós, daquele assinalado duque Godofré de Bulhom no golpe de espada que na ponte de Antioquia deu e do turco armado que quase em dois pedaços fez, sendo já rei de Jerusalém. Bem se pode e deve crer ter havido Tróia, e ser cercada e destruída pelos gregos, e assim mesmo ter sido conquistada Jerusalém, com outros muitos lugares por este duque e seus companheiros, mas semelhantes golpes como estes atribuímo-los mais aos escritores, como já disse, do que terem com efeito ocorrido verdadeiramente. Outros houve de mais baixa sorte que escreveram, que não apenas escreveram sobre algum cimento de verdade, mas nem sobre o rasto dela. Estes são os que compuseram as histórias fingidas nas quais se encontram as cousas admiráveis fora da ordem da natureza, que mais pelo nome de patranhas do que de crónicas com muita razão devem ser tidas e chamadas». In Graça Videira Lopes, tradução da obra de Garci Rodriguez de Montalvo, (Ediciones CátedraMadrid, 1996), 2006/2007.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Estava situada por cima do pomar de amendoeiras situado atrás da nossa casa e, quando vista à distância assemelhava-se bastante a uma mulher. Dominava a pequena colina onde se erguia, rodeada de ruínas e pedras»

jdact

O Verão de 1899
«(…) Foi a minha meia-irmã casada, Zeynep, que lhe disse que o primo que ela tinha em vista para mim não se interessava minimamente por mulheres, nem mesmo como máquinas destinadas à procriação. Zeynep começou a inventar histórias. A sua linguagem acabou por se deixar contaminar pela devassidão por si descrita, e a minha mãe sentiu que os seus relatos elaborados eram impróprios para os meus ouvidos solteiros. Pintou o meu pobre primo com cores tão sombrias e imorais que me foi pedido que abandonasse a sala. Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto me beijava e abraçava, a minha mãe lamentou-se com amargura. Zeynep convencera-a de que o nosso pobre primo era um monstro desprovido de piedade, e a minha mãe chorava ao pensar que poderia ter obrigado a sua única filha a casar com um ser tão bestial e depravado, transformando-se assim no instrumento da minha eterna infelicidade. Como seria de esperar, perdoei-lhe e depois conversámos e rimos acerca daquilo que poderia ter acontecido. Não estou certa de que ela tenha alguma vez descoberto que Zeynep inventou tudo. Quando o meu muito vilipendiado primo adoeceu no decorrer de uma epidemia de tifo, vindo a morrer passado pouco tempo, Zeynep achou melhor que a verdade permanecesse oculta aos olhos da minha mãe. O facto traduziu-se por um resultado infeliz. Durante o funeral do sobrinho, em Esmirna, e para grande consternação do meu tio Sifrah, a minha mãe sentiu grande dificuldade em revelar quaisquer sinais de desgosto, e quando eu me obriguei a chorar umas quantas lágrimas, ela brindou-me com um olhar onde a surpresa se misturava ao choque.
Tudo isto pertence ao passado. Para mim, a verdade mais importante é o facto de, ao fim de nove anos de exílio, poder estar de volta. O meu pai perdoou-me por ter fugido. Queria conhecer o meu filho. Quanto a mim, queria ver a Mulher de Pedra. Durante a infância, tanto eu, quanto a minha irmã havíamos descoberto esconderijos entre as grutas situadas junto de uma rocha antiga a qual em tempos devia ter sido a estátua de uma deusa pagã. Estava situada por cima do pomar de amendoeiras situado atrás da nossa casa e, quando vista à distância assemelhava-se bastante a uma mulher. Dominava a pequena colina onde se erguia, rodeada de ruínas e pedras. Não era nem Afrodite nem Atena. A elas nós reconhecíamos. Esta apresentava vestígios de um véu misterioso, o qual apenas se tornava visível quando o Sol se punha. O rosto estava oculto. Talvez, dizia Zeynep, se tratasse de uma qualquer deusa local há muito caída no esquecimento. Talvez o escultor estivesse com pressa. Talvez os cristãos estivessem a caminho e as circunstâncias o obrigassem a mudar de ideias. Talvez não se tratasse de nenhuma deusa, mas sim da primeira imagem esculpida de Mariam, a mãe de Jesus. Nunca conseguimos atribuir-lhe uma identidade e, assim, ela tornou-se a Mulher de Pedra. Enquanto fomos crianças, fizemos dela a nossa confidente, colocando-lhe perguntas íntimas e imaginando quais seriam as suas respostas.
Certo dia descobrimos que as nossas mães, tias e criadas faziam o mesmo. Passámos a esconder-nos atrás das rochas para escutarmos as suas histórias de tristeza e de dor. Esta era a única forma de sabermos o que se estava realmente a passar dentro da casa grande. Assim, a Mulher de Pedra transformou-se no repositório de todas as nossas dores ocultas. Os segredos são coisas terríveis. Mesmo quando necessários, acabam sempre por corroer as nossas almas. É sempre melhor ser-se franco, e a Mulher de Pedra proporcionava a todas as mulheres desta casa a possibilidade de desabafarem os respectivos segredos, dando-lhes a hipótese de terem uma vida interior saudável. Mãe, sussurrou Orhan à medida que me apertava o braço com força, será que o avô alguma vez me vai dizer qual o motivo que levou à construção deste palácio?» In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Poesias. Eu e Outras Poesias. Augusto dos Anjos. «Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias, trazendo no deserto das ideias o desespero endémico do inferno, com a cara hirta, tatuada de fuligens…»

jdact e wikipedia

Eu. Monólogo de uma Sombra
«Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
larva de caos telúrico, procedo
da escuridão do cósmico segredo,
da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.
em minha ignota mónada, ampla, vibra
a alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
a saúde das forças subterrâneas
e a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tectos,
não conheço o acidente da Senectus
Esta universitária sanguessuga
que produz, sem dispêndio algum de vírus,
o amarelecimento do papirus
e a miséria anatómica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma
o metafisicismo de Abidarma,
e trago, sem bramânicas tesouras,
como um dorso de azémola passiva,
a solidariedade subjectiva
de todas as espécies sofredoras.

Como um pouco de saliva quotidiana
mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
e o animal inferior que urra nos bosques
é com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
amarguradamente se me antolha,
à luz do americano plenilúnio,
na alma crepuscular de minha raça
como uma vocação para a Desgraça
e um tropismo ancestral para o Infortúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,
trazendo no deserto das ideias
o desespero endémico do inferno,
com a cara hirta, tatuada de fuligens
esse mineiro doido das origens,
que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
a vida fenoménica das Formas,
que, iguais a fogos passageiros, luzem.
E apenas encontrou na ideia gasta,
o horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
sobre a esteira sarcófaga das pestes
a mostrar, já nos últimos momentos,
como quem se submete a uma charqueada,
ao clarão tropical da luz danada,
o espólio dos seus dedos peçonhentos.
[…]



In Augusto dos Anjos, Poesias, Eu e Outras Poesias, 1912, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes, Projecto Livro Livre, nº 167, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT

O Século Primeiro depois de Beatriz. Amin Maalouf. «… até cultivei, em pousio, duas ou três amizades. Sobretudo terá havido Clarence, e depois Beatriz; direi, que raramente suportei os zumbidos das misérias quotidianas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Existem nos mercados do Oriente favas misteriosas a que antigas supersptições dão o poder de favorecer o nascimento de crianças do sexo masculino. Quando o narrador, um entomologista francês especialista em escaravelhos, consegue encontrar algumas numa viagem ao Egipto, suspeita que o mundo chegou a uma fase crítica da história. Por toda a parte, os nascimentos de meninas se tornam raros. Qual a origem da desgraça? Alegre e sério, presta-se a mais de uma leitura. Entre elas, o amor maternal do pai pela filha e a do encontro assustador entre as perversões do arcaísmo e as da modernidade».

«É bem conhecido o fascínio exercido pelo número sete sobre o espírito do homem medieval, a ponto de a Idade Média ter celebrado o triunfo do sete. O sete é símbolo de ordem e de totalidade, síntese quase mágica de unidade e de multiplicidade…»

«Tu estás no jardim de uma estalagem de Praga
e te sentes muito feliz com uma rosa sobre a mesa
e observas em vez de escrever o teu conto em prosa
o besouro que dorme no coração da rosa» In Apollinaire

«Dos acontecimentos que relato nestas páginas não fui mais que uma testemunha entre outras, mais aproximado que a multidão de espectadores, mas tão impotente como eles. o meu nome, eu sei, foi mencionado nos livros, isso causou-me outrora um certo orgulho. Mas já não causa. A mosca da fábula podia exultar porque a carruagem chegou a bom porto; de que se teria ela vangloriado se a viagem tivesse acabado num precipício? Esse foi o meu papel, na verdade, o de um sonâmbulo supérfluo sem sorte. Pelo menos não fui nem lorpa nem cúmplice. Nunca andei atrás de aventuras, mas às vezes a aventura fez-me sair do covil. Se eu tivesse podido escolher, tê-la-ia confinado ao único universo que me apaixonou desde a infância e que, com oitenta e três anos devidamente festejados, me apaixona ainda sem descanso: os insectos, esses admiráveis liliputianos, resumos de elegância, de habilidade, de imemorial sabedoria. Tenho o hábito de esclarecer os meus interlocutores profanos de que não sou, de modo algum, um defensor dos insectos. Com os animais ditos superiores, que nós, os homens, cedo escravizamos e abundantemente massacramos, de que triunfamos de uma vez para sempre, podemos permitir-nos doravante ser magnânimos. Não com os insectos. Entre eles e nós a luta prossegue, quotidiana, implacável, e nada autoriza a predizer que o homem sairá vencedor. Os insectos estavam nesta Terra bem antes de nós, continuarão lá ainda antes de nós, e quando pudermos explorar os planetas longínquos serão mais depressa os seus congéneres do que os nossos que lá encontraremos. Com o que nos sentiremos, penso eu, reconfortados.
Já o disse, não sou um defensor dos insectos. Mas certamente um dos seus tenazes admiradores. Como não o ser? Que criatura alguma vez destilou matérias mais nobres que a seda, o mel ou o maná do Sinai? Desde sempre, o homem esforça-se por copiar destes produtos de insectos a textura e o gosto. Que dizer também do voo da mosca vulgar? Quantos séculos nos serão ainda precisos para imitá-la? Sem falar da metamorfose de uma miserável larva. Eu poderia invocar uma infinidade de exemplos. Não é esse o meu propósito. Nas páginas que vão seguir-se, não é da minha paixão pelos insectos que se trata, mas justamente dos únicos momentos da minha vida em que me interessei com prioridade pelos humanos. A ouvirem-me, tornar-me-ão facilmente por um urso misantropo. Isso não seria propriamente verdade. Os meus estudantes conservam de mim a melhor recordação; os meus colegas não disseram excessivamente mal; às vezes fui sociável, sem exagero; até cultivei, em pousio, duas ou três amizades. Sobretudo terá havido Clarence, e depois Beatriz; mas delas voltarei a falar. Digamos, para resumir sem mentir, que raramente suportei os zumbidos das misérias quotidianas, mas que aos grandes debates do meu tempo prestei constantemente um ouvido novo. Amei até ao fim o século da minha juventude, os seus entusiasmos ingénuos, os seus ingénuos terrores à aproximação do milénio, ainda e ainda o átomo, e de novo a epidemia, depois esses buracos de Dámocles por cima dos polos. Foi um grande século, a meu ver o maior, talvez o último grande, foi o século de todas as crises e de todos os problemas; hoje, no século da minha velhice, só se fala de soluções. Eu pensei sempre que o céu tinha inventado os problemas e o inferno as soluções. Os problemas empurram-nos, maltratam-nos, fazem-nos perder as estribeiras, fazem-nos sair de nós próprios. Salutar desequilíbrio, é pelos problemas que todas as espécies evoluem; é pelas soluções que elas se entorpecem e extinguem. Será por um acaso que o pior crime da nossa memória se tenha intitulado solução, e final? In Amin Maalouf, O Século Primeiro depois de Beatriz, 1992, tradução de Daniel Gonçalves, Difel (Difusão Editorial), 2008, ISBN 978-972-290-919-8.

Cortesia de Difel/JDACT

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Olga. Fernando Morais. «Para meu espanto, pude ver depositados em Washington documentos internos do PC brasileiro desconhecidos aqui e que tinham sido misteriosamente transferidos para os Estados Unidos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No modesto apartamento de Ruth Werner, a tenente coronel honorária do Exército Vermelho Soviético e uma das maiores escritoras alemãs, obtive cópias de depoimentos que ela tomara no fim dos anos 50 de sobreviventes de Neukõlln, Barnimstrasse, Lichtenburg e Rávensbruck (muitos dos quais já faleceram) e não utilizara integralmente no seu livro Olga Benario. O meu trabalho em Berlim Oriental teria sido infinitamente mais difícil sem a ajuda do jovem ítalo-germano-brasileiro Dario Canale (que eu havia entrevistado em 1967 no Brasil, quando ele esteve preso nas prisões da Polícia Federal sob a acusação de subversão). Dario ajudou-me na busca e selecção de material sobre Olga e Otto Braun, levou-me a conhecer a prisão de Moabit em Berlim Ocidental, e acabou por obrigar a sua sogra Elfriede Bruning, a convidar as suas amigas, militantes comunistas desde o começo do século, para jantares em sua casa, onde eu as esperava de gravador na mão. Além dos documentos obtidos, as entrevistas feitas por mim na República Democrática Alemã com pessoas que conviveram com Olga sob o nazismo foram valiosíssimas para a reconstituição da sua passagem pelo Brasil.
Durante os anos que passou em Barnimstrasse, Lichtenburg e Ravensbruck, ela contou com pormenores às companheiras de prisão a sua experiência brasileira: a paixão por Prestes, o deslumbramento com o Brasil, a expectativa seguida da frustração com a revolta fracassada, a emoção que lhe provocara a solidariedade dos companheiros no presídio da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Como a sua passagem pelo Brasil se tornara, para mim, a parte mais obscura da investigação, pressionei os amigos de Olga em Berlim até à irritação com perguntas sobre cada momento dos seus 17 meses no Rio de Janeiro, e em alguns casos obtive depoimentos torrenciais. De Berlim parti para Milão, onde investiguei, em tempo integral, no Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano (mantido pela Fundação Giangiacomo Feltrinelli e guardado pelas unhas e os dentes de José Luís del Roio), onde está depositada boa parte da memória operária e comunista brasileira. As entrevistas e investigações feitas na Europa e no Brasil remetiam-me a outros endereços: o Nationat Archives e os arquivos do Departamento de Estado, em Washington, e o primeiro recesso parlamentar disponível foi dedicado às pesquisas nos Estados Unidos. Com a ajuda de Ralph Waddey, funcionário anglo-baiano do Departamento de Estado, e abusando da infindável paciência de Richard Gould director do Departamento Legislativo e Diplomático do National Archives, fiz um fascinante mergulho na papelada que me custou a modesta quantia de 50 centavos de dólar cada cópia xerográfica: além de incontáveis documentos secretos referentes à vida das minhas personagens, havia material abundante sobre a repressão à revolta comunista de 1935 no Brasil. Ironicamente eu iria encontrar, no coração de Washington, relatos copiosos sobre as torturas infligidas pela polícia brasileira ao dirigente comunista alemão Arthur Ewert, pistas indiscutíveis sobre a acção de espiões na direcção comunista e detalhes sobre o desmantelamento da revolta de 1935, tudo isto escrito por um agente do governo norte-americano. Para meu espanto, pude ver depositados em Washington (e disponíveis a 50 cents) documentos internos do PC brasileiro desconhecidos aqui e que tinham sido misteriosamente transferidos para os Estados Unidos.
De volta ao Brasil, retomei as entrevistas, revi datas e dados com Luís Carlos Prestes e com outros entrevistados e continuei à procura de sobreviventes de 1935 que pudessem dar depoimentos ou, pelo menos ajudar-me a conferir as informações de que dispunha. Foi nessa época que me lembrei de uma frase de um antigo chefe de reportagem, que costumava dizer que ao repórter, como ao avançado, não basta trabalhar direito, é preciso ter sorte. Eu tive, e muita. Foram meros golpes de sorte, por exemplo, que me levaram a duas personagens desta história, Tuba Schor e Celestino Paraventi. Ela eu descobri casualmente: o seu filho Nelson foi o médico que realizou o parto de minha ex-mulher, quando nasceu Rita, minha filha, e ao saber que eu escrevia sobre a vida de Olga, colocou-me em contacto com a mãe. Quanto a Paraventi, foi ele quem me descobriu: ao assistir a uma entrevista que eu dera ao repórter Ney Gonçalves Dias, na TV Manchete, sobre o livro em curso, ele procurou o seu sobrinho José Gregori, meu colega de bancada na Assembleia Legislativa, para me oferecer o seu delicioso depoimento sobre a passagem de Olga por São Paulo». In Fernando Morais, Olga, 1985, Editora Ómega, 1993/1994, Companhia das Letras, 1985/1999, epub, 2014, ISBN 978-857-164-250-8.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Poesia Provençal. Textos. Graça Lopes. «Mas, elaboram ao mesmo tempo, como se disse, as regras de uma refinada arte de amar, na qual a mulher passa a desempenhar um papel central, já que a ela cabe a definição e condução do jogo erótico…»

Cortesia de wikipedia

Breve Nota Sobre A Poesia Provençal
«(…) Durante os dois séculos seguintes, o Sul de França, então politicamente autónomo do Norte, e onde a langue d’oc é dominante, vai conhecer uma brilhante civilização, que os seus numerosos e talentosos trovadores e jograis vão dar a conhecer a toda a Europa. Cantando o amor, a joi e a jovens (juventude), os trovadores provençais, sobretudo os da primeira fase, elaboram as regras básicas de uma arte de trobar que constituirá a matriz das posteriores escolas trovadorescas, nomeadamente da importante escola galego-portuguesa (de que uma das formas, a cantiga de amor, é absolutamente tributária). Mas, elaboram ao mesmo tempo, como se disse, as regras de uma refinada arte de amar, na qual a mulher passa a desempenhar um papel central, já que a ela cabe a definição e condução do jogo erótico, que o leal amador deve aceitar e a quem deve obedecer, como servidor (note-se que a poesia provençal conhece igualmente, e de forma também inovadora, brilhantes autoras femininas, as trobairitz, de que a mais célebre será a Contessa de Dia). O fin’amor opõe-se, assim, não só aos tradicionais contratos sociais que, em regra, presidem, na época, às relações entre os sexos, nomeadamente no tocante ao casamento, mas opõe-se igualmente ao entendimento dessas relações em termos de pura satisfação de instintos básicos (o comércio sexual, que faz da mulher um puro e descartável objecto de prazer).

Bernart Ventadorn (…1150-80…)
«Quando vejo a cotovia mover
de alegria as asas contra o raio
que se esquece e se deixa cair
com a doçura que no coração lhe vai
ai! Tão grande inveja me vem
daqueles que vejo andar contentes!
E maravilho-me eu como de repente
de desejo o meu coração não se funde.

Ai eu! Tanto cuidava saber
de amor e tão pouco sei!
Pois eu de amar não me posso conter
aquela cujo favor nunca terei;
tem o meu coração e tem-me todo a mim,
tem-se a si própria e ao mundo inteiro!
E quando me tomou nada mais me deixou
senão desejo e coração voraz.
Perdi já eu sobre mim o poder

e deixei de ser meu desde o instante
em que me deixou nos seus olhos ver,
num espelho que me agrada tanto.
Espelho, pois me mirei em ti,
mataram-me os suspiros mais profundos,
que assim me perdi, como se perdeu
o belo Narciso na fonte.

Das donas me desespero,
não mais nelas me fiarei!
Que assim como as usava defender
assim as desabonarei;
pois vejo que nenhuma me auxilia
junto daquela que me destrói sem razão,
de todas duvido, de todas desconfio,
pois sei bem que todas iguais são.

Nisso faz bem o papel de mulher
a minha dona, que condeno assaz:
pois não quer o que se deve querer
e o que lhe é vedado faz.
Caído sou em sua impiedade
e agi pois como o louco na ponte!
E não sei porque me vou curvado
se não por querer subir alto monte.

Piedade está perdida a valer,
e eu não o soube jamais,
pois aquela que mais a deveria ter
não a tem; e onde a irei buscar?
Ah! Como pouco parece, a quem a vê,
que este cativo amador,
que já sem ela não encontrará bem,
deixe morrer, sem socorro lhe dar!
[…]

In Graça Videira Leal, Poesia Provençal, alguns textos, Revista Medievalista, director Vasconcelos Sousa, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.


Cortesia de RMedievalista/JDACT

A Bastarda de Istambul. Elif Shafak. «… algum defeito no sistema de altifalantes das mesquitas nas proximidades. Ou então os seus ouvidos tinham-se tornado extremamente sensíveis. Vai terminar num minuto»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pronto, pronto, disse ele, tentando consolar Zéliha enquanto vestia um par de luvas cirúrgicas. Tudo vai correr bem, não se preocupe. É apenas um sono leve. Vai dormir, sonhar, e antes de terminar o sonho nós a acordaremos e depois irá para casa. Depois disso não se lembrará de nada. Quando Zéliha chorava daquele jeito, todas as suas expressões tornavam-se visíveis e as bochechas afundavam, acentuando-lhe o traço mais vigoroso: o seu nariz! Aquele notável nariz aquilino que, como os irmãos, ela herdara do pai; diferente dos irmãos, porém, o dela tinha o dorso mais acentuado e era um pouquinho mais alongado nas bordas. O médico deu-lhe umas palmadinhas no ombro, passou-lhe um lenço de papel e depois a caixa inteira. Sempre tinha uma caixa de lenços de papel de prontidão junto à sua mesa. As companhias farmacêuticas distribuíam caixas de lenços de papel grátis. Juntamente com canetas, agendas e outras coisas que traziam gravado os seus nomes, as companhias fabricavam lenços de papel para as mulheres que não conseguiam parar de chorar. Figos… Figos deliciosos… Figos óptimos, maduros! Era o mesmo vendedor ou um outro? Como os clientes o chamariam…? Figueiro…?!, pensou Zéliha consigo mesma, deitada na mesa de uma sala perturbadoramente branca e imaculada. Nem os equipamentos nem as facas a assustavam tanto quanto aquela absoluta brancura. Havia algo na cor branca que se assemelhava ao silêncio. Ambos eram desprovidos de vida.
No seu esforço para se afastar da cor do silêncio, Zéliha distraiu-se com uma mancha preta no tecto. Quanto mais fixava o olhar, mais a mancha se parecia com uma aranha negra. Primeiro imóvel, depois começou a rastejar. A aranha tornava-se cada vez maior à medida que a injecção se espalhava pelas veias de Zéliha. Em poucos segundos estava tão pesada que não conseguia mover um dedo. Enquanto resistia a ser carregada para longe pelo sono da anestesia, começou a soluçar de novo. Tem a certeza de que é isso que quer? Talvez queira pensar mais sobre o assunto, disse o médico numa voz aveludada, como se Zéliha fosse um monte de pó e ele tivesse medo de fazê-la voar para longe com o vento de suas palavras se falasse mais alto. Se quiser reconsiderar a sua decisão, ainda há tempo. Mas não havia. Zéliha sabia que aquilo tinha de ser feito naquela hora, naquela primeira sexta-feira de Julho. Agora ou nunca.
Não há nada a reconsiderar. Não posso ter essa filha, ouviu-se dizer abruptamente. O médico fez um sinal afirmativo com a cabeça. Como se esperasse por esse gesto, a prece de sexta-feira inundou de repente a sala, vinda da mesquita próxima. Em segundos, outra mesquita juntou-se à primeira, e depois outra e mais outra. O rosto de Zéliha contorceu-se, desconfortável. Detestava quando uma prece destinada originalmente a ser emitida pela pureza da voz humana era desumanizada numa voz eléctrica, estrondeando pela cidade, produzida por microfones e altifalantes. Logo o clamor era tão ensurdecedor que Zéliha suspeitou haver algum defeito no sistema de altifalantes das mesquitas nas proximidades. Ou então os seus ouvidos tinham-se tornado extremamente sensíveis. Vai terminar num minuto… Não se preocupe. Era o médico falando. Zéliha olhou-o interrogativamente. O desprezo pela electro-prece era tão óbvio no rosto dela? Não que se importasse. Entre todas as mulheres Kazanci, Zéliha era a única declaradamente não-religiosa. Quando criança, agradava-lhe imaginar Alá como o seu melhor amigo, o que não era coisa ruim, claro, excepto porque a sua outra melhor amiga ser uma garota sardenta, loquaz, que passara a fumar aos oito anos. A garota era filha da faxineira da família, uma curda gorducha cujo bigode nem sempre se preocupava em depilar. Naquela época, a faxineira ia à casa de Zéliha duas vezes por semana, levando sempre a filha. Depois de um tempo, Zéliha e a garota tornaram-se boas amigas, chegando até a cortar seus respectivos dedos indicadores para misturarem o sangue e serem irmãs de sangue para sempre. Por uma ou duas semanas, as garotas andaram com curativos ensanguentados amarrados nos dedos como um sinal de sua irmandade. Naqueles tempos, sempre que Zéliha rezava, pensava nessas palhaçadas, se pelo menos Alá também se pudesse tornar uma irmã de sangue…, sua irmã de sangue…» In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.

Cortesia de EBF/JEditora/JDACT

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Entre a Ficção e a História. A Última Quimera. Rosana A. Harmuch. «… o estudo da literatura sempre implicou um estudo da história, já que sempre concebi a obra de arte literária, como de resto qualquer obra de arte, como o fruto de um processo histórico, de um estado em que a sociedade»

Cortesia de wikipedia

Resumo
«A tendência de criar obras em que a ficção e a história se mesclam é perceptível nas produções literárias contemporâneas brasileiras bem como nas de outros países. Dentro desse interesse pelo passado, uma particularidade vem-se firmando: a de ficcionalizar personalidades da historia da literatura. Este trabalho tem por objectivo analisar A última quimera, obra cuja autora, Ana Miranda, ficcionaliza o poeta Augusto dos Anjos. Para tanto, primeiramente fez-se necessária uma reflexão sobre as semelhanças e diferenças entre os discursos histórico e ficcional. Na tentativa de compreender melhor o texto da autora, o passo seguinte foi o de repensar os conceitos de romance e de romance histórico, principalmente por ser bastante visível o parentesco entre as produções ficcionais de carácter histórico na actualidade e o romance histórico do século XIX. Apesar das similaridades com o romance mais tradicional, obras como A última quimera apresentam inovações no modo de narrar que as aproximam do pós-moderno, por isso receberam por parte de alguns teóricos novas denominações, de modo que tentei compará-la com o que foi proposto como traço distintivo por dois teóricos em especial. Na segunda parte do trabalho, passei ao estudo propriamente dito do texto, buscando compreender como a personagem Augusto dos Anjos havia sido construída. A forma de um mamífero vetusto, modo como o próprio Augusto se caracterizou, e como a crítica literária acabou de certa forma oficializando, não foi contestado na narrativa. Em Os fantasmas hamléticos dispersos estão os três poetas cujas trajectórias se entrecruzam: Augusto, Olavo Bilac e o narrador. A seguir, em A sereia falaciosa, há a análise do discurso histórico presente na obra e, na sequência, o universo feminino do princípio do século delineado pela autora. Percebendo a obra como um leão feito de carneiros assimilados, ou seja, como um discurso composto de vários outros, analisei o modo como esses foram colaborando para a manutenção da visão estereotipada de Augusto dos .Anjos e ao mesmo tempo foram subtilmente nos colocando diante do questionamento da instauração do cânone literário».

Colocando os pés no chão
«Escrever este texto significou, antes de mais nada, enfrentar um desafio pessoal. A paixão pela Literatura, talvez fosse melhor dizer, pela leitura, nasceu cedo, mas sem nenhuma orientação ou reflexão sobre o verdadeiro significado daquele emaranhado de títulos, autores, personagens, mundos construídos era uma forma, talvez, de escapar da realidade que me circundava e que não me satisfazia, ao contrário, me desagradava e muito. Quem sabe? Na introdução de um trabalho que especula sobre as relações entre a literatura e a história seria demais tentar especular sobre a minha própria história. As poucas respostas e as muitas perguntas que esta pesquisa me trouxe são o bastante, já que a totalidade do sentido é inalcançável. Para mim, o estudo da literatura sempre implicou um estudo da história, já que sempre concebi a obra de arte literária, como de resto qualquer obra de arte, como o fruto de um processo histórico, de um estado em que a sociedade que a produziu se encontrava naquele determinado momento. Essa crença tornava o trabalho ainda mais interessante, pois levava necessariamente a reflexões sobre a sociedade na qual me inseria, uma espécie de possibilidade de compreender melhor o passado, buscar nele as causas, os processos que nos permitiram chegar onde estamos. Embora isso me fosse claro, havia inúmeras outras dúvidas a tentar resolver. Acreditava, poder resolver as minhas inquietações a respeito da literatura. Claro está que as minhas ilusões de totalidade, de encontrar todas as respostas não passavam disso, ilusão. Muitas dúvidas foram sanadas, muitas não e inúmeras outras foram surgindo ao longo do caminho, de modo que este trabalho representa apenas o estágio em que estão as minhas reflexões sobre esse salutar jogo que é a literatura, permitindo-me plagiar Barthes. Quanto à questão da retomada do passado, que sempre me interessou, embora de uma forma bastante simplista, seria pedir demais que eu não me sentisse absolutamente fascinada ao perceber o quanto a relação entre a literatura e a história vem-se tornando um dos pontos de maior interesse entre os teóricos, e se há esse interesse é porque as produções artísticas têm-se voltado para ela. Exemplo disso é a farta produção de romances ditos históricos na contemporaneidade. Essa associação explícita entre a ficção e a história parece ter nascido da consciência de que ambas são discursos que servem para tentar dar sentido ao passado, o que me parece ser, em última instância, a função de qualquer construção humana, encontrar um sentido». In Rosana Apolonia Harmuch, A ùltima Quimera, entre a Ficção e a História, Dissertação de Mestrado apresentada na área de Literatura Brasileira, do Sector de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1997.

Cortesia de UFParaná/JDACT

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A Audácia dessa Mulher. Ana Maria Machado. «De profissão, de paixão, de maldição, como queira..., confirmou ele. Então é a pessoa que nós chamámos. Confesso que continuo sem saber por quê. Não vejo em que eu possa encaixar-me…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Porquê eu? Desde o começo da reunião Virgílio estava fazendo essa pergunta a si mesmo. Só agora surgia a oportunidade de fazê-la em voz alta. Mas não teve resposta. Em vez disso, desencadeou duas frases quase em simultâneo. Desculpe, mas não entendi a sua dúvida, disse o homem corpulento sentado à cabeceira da mesa comprida. Tirou-me as palavras da boca, comentou em voz alta a moça magra de cabelo encaracolado, que chegara ainda mais atrasada do que Virgílio e se sentara numa cadeira extra, num cantinho. Diante disso, ele achou que convinha explicar melhor: bom, quando eu cheguei, todos já estavam nos seus lugares, mas a reunião ainda não tinha começado. Quer dizer, eu acho que não perdi nada. Você apresentou-se, o que foi muito bom, porque eu, por exemplo, só o conhecia de nome, e começou a dizer que estávamos todos aqui reunidos para discutir o projecto de uma próxima novela. Falou em prazos, recursos, cronogramas. Depois passou a palavra ao autor, ao director, ao pessoal da produção, a quem vai escolher o elenco. Ficámos a saber que a história se passa no século XIX, no Rio de Janeiro, mas com certeza vai incluir também uma viagem das personagens à Europa... Enfim, tudo o que nós todos ouvimos e eu não preciso ficar repetindo. Tenho a certeza de que prestei atenção e não perdi nada. Mas não consigo deixar de achar que entrei na sala errada, ou vim no dia errado. Apesar de o meu nome estar lá fora, com a recepcionista. Quer dizer, porque me chamaram? Eu não tenho nada a ver com isso. Nem eu..., acrescentou novamente a moça do cabelo encaracolado. Não se chama Virgílio Pádua Toledo?, perguntou o grandalhão, ignorando o comentário dela. Exactamente. Podia dizer aos outros o que faz? Sou cozinheiro e dono de um restaurante. Do Marco Polo, na Lagoa. E arquitecto de profissão, creio. De profissão, de paixão, de maldição, como queira..., confirmou ele.
Então é a pessoa que nós chamámos. Confesso que continuo sem saber por quê. Não vejo em que eu possa encaixar-me na produção de um programa de televisão como esse. Pelos rostos dos outros em volta da mesa, Virgílio ia percebendo que a curiosidade não era só sua. Com excepção da moça magra, todos pareciam à vontade ali, no seu ambiente. Eventualmente trocavam comentários em voz baixa, já que se conheciam. Dava para ver que eram do ramo. Já deviam estar acostumados a trabalhar juntos e não disfarçavam ocasionais olhares meio intrigados em direcção a ele e à moça, que nesse momento confirmava com um gesto de cabeça a última frase de Virgílio. Sorrindo, o homem corpulento que comandava a reunião e se apresentara como José Egídio, director daquele núcleo, voltou-se então para ela e disse: pelo jeito, está com a mesma dúvida. Pode ter certeza de que estou. Mas primeiro não se quer se apresentar, Bia?, convidou ele. Meio hesitante, ela começou: o meu nome é Beatriz Bueno e sou jornalista e..., bom, biscateira cultural. Sorrisinhos. E escritora, acrescentou José Egídio. Autora de livros de viagem de muito sucesso. E de muito boa qualidade, segundo me garante o Muniz, eu ainda não tive oportunidade de ler. Mas como todos os que conhecem o nosso autor aqui presente sabem do seu nível de exigência, não preciso insistir no valor decisivo que uma recomendação dessas teve na minha decisão de a convidar para estar hoje aqui connosco e se juntar a nós neste projecto que estamos a começar.
Para fazer o quê?, perguntou ela, muito directa. Em vez de responder, José Egídio fez um sinal com a cabeça em direcção ao Muniz, enquanto devolvia a pergunta: ele já vai explicar. Mas antes eu gostaria de saber, por curiosidade: para que acha que foi chamada? Imagino que por alguma estratégia nova de divulgação, para fazer uma matéria sobre essa futura série, é série, não? Tenho a impressão de que era o que eu tinha entendido, mas ele acabou de falar em novela e eu fiquei na dúvida. Os gestos de assentimento em volta da mesa confirmaram que não era uma novela, mas uma série. Só que a moça nem se interrompeu e continuou a falar: e vou logo dizendo que é um equívoco, eu não tenho a menor condição, não trabalho no segundo caderno e lá no jornal é tudo muito compartimentado. Eu só escrevo sobre viagens, no caderno de turismo. E nem vou à redacção, escrevo em casa ou num hotel quando estou fora, mando o texto pela internet. No fundo, sou só uma colaboradora fixa, não conheço quase ninguém lá, nem dá para pedir uma ajuda numa cobertura...
Hesitou um pouco e acrescentou: além disso, tem uma coisa meio delicada. Eu trabalho para o jornal. Quero dizer, não posso receber de uma empresa ou de um projecto como esse para trabalhar para os senhores. Não seria ético, entendem? Eu sei que é super-comum, muitas pessoas o fazem, hoje em dia todos aceitam. Mas eu acho que sou meio antiquada nessas coisas. Não estou querendo julgar ninguém nem criticar colegas, mas o caso é que eu não faço isso. Para mim, antes de mais nada, vem o interesse dos leitores. Não posso ficar colhendo elogios no jornal. Quero dizer que é um grande mal-entendido. Voltando-se para Virgílio, José Egídio repetiu a pergunta: e você? O que imagina que lhe vamos pedir?» In Ana Maria Machado, A Audácia dessa Mulher, 1999, Editora Objectiva (Prisa Edições), 2011, ISBN 978-857-962-114-7.

Cortesia de EObjectiva/JDACT

A Alquimia. Roney Ressetti. «… a maneira como o mercúrio pode ser assim impregnado foi mantida em segredo por aqueles que sabiam, e constitui provavelmente um acesso para qualquer coisa de mais nobre que a fabricação do ouro…»

Cortesia de wikipedia

«A ciência alquímica não se ensina; cada qual deve aprendê-la por si mesmo, não de modo especulativo, mas sim com a ajuda dum perseverante trabalho, multiplicando os ensaios e as tentativas, de maneira a submeter sempre as produções do pensamento à verificação da experiência. Aquele que teme o labor manual, o calor dos fornos, a poeira do carvão, o perigo das reacções desconhecidas e a insónia das longas vigílias esse nunca saberá coisa alguma». In Fulcanelli

«Já se escreveu muito sobre a Alquimia e quase todo o mundo já ouviu falar sobre ela. Apesar disso, poucos possuem uma ideia exacta do que ela seja. Os mais bem informados sabem que ela se relaciona com a obtenção da Pedra Filosofal, que transformaria os metais em ouro (transmutação), e com a elaboração do Elixir da Longa Vida ou Panacéia Universal, que curaria todas as doenças e prolongaria a vida. A Alquimia é uma ciência antiga e tradicional, de grande repercussão na Idade Média e Renascença, tendo chegado até aos nossos dias. É costume colocá-la junto às denominadas ciências ocultas ou esotéricas, como a Magia, porém, ao contrário do que comumente se imagina, ela não se baseia em fórmulas mágicas, nem em encantamentos, nem na invocação de espíritos ou de entidades sobrenaturais. A Alquimia é uma ciência baseada no conhecimento elaborado através da experimentação e do trabalho acumulado por centenas de anos, por inúmeras gerações de investigadores. As suas práticas envolvem trabalhos de laboratório e o manuseio de substâncias, empregando técnicas e equipamentos relativamente sofisticados.
Grande parte das substâncias, das técnicas e dos equipamentos empregados actualmente pelos químicos, foram descobertos e desenvolvidos pelos alquimistas. Como toda a ciência tradicional e antiga, a Alquimia apresenta um carácter filosófico-metafísico marcante, presente nas suas teorias, na sua simbologia e no seu linguajar, bastante ricos e complexos. Os temas tratados pela Alquimia, a sua linguagem alegórica e o seu simbolismo, têm fascinado diversos investigadores. O psicólogo Carl Jung dedicou grande parte da sua obra ao estudo e à interpretação psicológica dos símbolos e alegorias alquímicas. Isaac Newton, dava mais importância às suas experiências alquímicas do que aos seus trabalhos de Matemática e de Física que o tornaram famoso. O seu sobrinho Humphrey Newton escreveu: durante seis semanas na Primavera e seis semanas no Outono, o fogo no laboratório dificilmente se extinguia..., ele costumava, às vezes, examinar um velho livro bolorento que estava no seu laboratório; penso que se chamava Agricola de Metallis, sendo o seu principal desígnio a transmutação dos metais... Newton acreditava na existência de uma cadeia de iniciados que se alastrava no tempo até uma antiguidade muito remota, os quais conheciam os segredos da transmutação e da síntese do ouro.
Encontramos em seus escritos: a maneira como o mercúrio pode ser assim impregnado foi mantida em segredo por aqueles que sabiam, e constitui provavelmente um acesso para qualquer coisa de mais nobre que a fabricação do ouro e que não pode ser comunicada sem que o mundo corra um grande perigo, caso os escritos de Hermes digam a verdade. Existem outros grandes mistérios além da transmutação dos metais. Newton também costumava afirmar: se vi mais longe do que os outros, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes. Determinados autores acham que tais gigantes seriam os iniciados, que Newton deveria ter conhecido pessoalmente. Alguns investigadores consideram que a Alquimia surgiu dos restos do saber de uma civilização muito antiga e bastante evoluída. Frédéric Soddy, autor da Lei de Soddy sobre a desintegração radioactiva, prémio Nobel de Química, escreveu no seu livro L’interprétation du radium: penso que existiram no passado civilizações que tiveram conhecimento da energia do átomo e que uma má aplicação dessa energia as destruiu totalmente.

A Alquimia e a Química
Considera-se que a Química se originou da evolução da Alquimia. Porém, na verdade, a Química se originou da evolução da Espagíria, a Química Medieval. A Espagíria era uma mistura da Alquimia com os diversos processos químicos empíricos, desenvolvidos desde a antiguidade, abrangendo a confecção de medicamentos, tinturas, bebidas, sabão, vidro, técnicas metalúrgicas, etc. incorporando elementos de magia e de astrologia. Com outras disciplinas, como a Física, ocorreu uma evolução gradativa. Da Física Antiga, de Aristóteles, passamos para a Física Clássica, de Galileu, Kepler e Newton, e finalmente, para a Física Moderna, de Einstein e outros. Inclusive o próprio nome se manteve; Physica, em latim, e Physike, em grego, cuja origem é physis, natureza. A Química é a mais recente das Ciências Naturais. A Matemática e a Física existiam há séculos antes de Cristo, enquanto que a Química, apesar de já ser praticada empiricamente desde a antiguidade, só se consolida como Ciência no século XVII». In Roney Ressetti, A Alquimia, ePub, Wikipedia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

Maina Mendes. Maria Velho Costa. «Como erguida espátula de nogueira seca, as mãos cruzadas no arremesso da laçada do bibe ruída, Maina Mendes olha o fogo da cozinha. As chamas, de tão perto, batem-lhe na cara cores…»

jdact

A Mudez
«(…) Depois, logo a apanhar-lhe a mão, vem um menino pesado, franja espessa sob o boné de marinheiro e os olhos onde os de sua mãe, na vergonha da rua, no caminho escolhido certo e rápido. A fita de azul quebrado ora sobe ao ar, logo cai na cabeça coberta de pelagem muita e crespa, em torno à cara de compacto susto, até ao cabeção largo e exacto, que tudo suporta. A outra mão vai apertando rijo o arco e o pau e vai seguindo puxando, olhando dos trens as rodas, da gente os pés, sempre atrás, sempre guiado sob o terrível desprezo da janela que se afasta. A rua rebenta em gritos, em redes de galinheiras, perus assustados que se adelgaçam do pau que os comanda, vacilando em grupos abaixo de Maina Mendes. A rua para ali vai e por trás dela as coisas estão paradas de uma maneira fixa e precisa, de sempre, pois o espanador de arrancadas penas passa e passa o pano peloso, mas mantêm-se os braços em meio abraço negro dos cadeirões na obscuridade, os crochets que protegem e estiolam na luz parca, as volutas trabalhosas dos pés das mesas, as porcelanas azuis onde se assentam tristes criaturas esperando e do tamanho de um só dedo, as velas onde a cor esmorece e os búzios ventando secretamente. Nos jarrões chineses bóiam bonecas palidíssimas, de olhos que espreitam continuadamente e mãos minúsculas e aguçadas na profusão de milhentas flores inverosímeis engordando-lhes por toda a bojura. Na vitrine pesam, num só corpo, três macacos ferrosos, o que se esmaga a boca, o que se esmaga os olhos, o que se esmaga as orelhas. Num quadro estão árvores presas, estampadas, lúgubres numa tarde que acaba sempre já em o cachaço sem comer. Noutro, cães mordem parados a chaga aberta de um veado revirando os olhos debaixo de uma rodela opaca que é a lua. Há um retrato de homem barbado, os olhos sempre postos nos cortinados descendo do estuque macerado em florais lá alto, na sempre penumbra da sala.
Maina Mendes, as costas para a rua, não sofre. A sala pertence-lhe por direito de mercê. Coisas ali não estão porque as quebrou pouco depois do berço. Quebradas são agora todas, porque após conhecidas e tocadas não lhes ficou na posse, não lhe ficou qualquer amor. Às arrecuas sai e tão certo o faz, tão habitual o trajecto moroso, preparado ainda de esperançosa raiva para a tremenda imobilidade dos cortinados, que, como sempre, acaba na frieza na cabeça que é do puxador de vidro verde e limoso e facetado.

«Las palabras son muertas
junto a tu rayo amarillo,
junto a tu cola roja,
junto a tus crines de luz amaranto,
son frias las palabras».
Pablo Neruda, in ‘Ode al fuego

Como erguida espátula de nogueira seca, as mãos cruzadas no arremesso da laçada do bibe ruída, Maina Mendes olha o fogo da cozinha. As chamas, de tão perto, batem-lhe na cara cores que vão do vermelho febril a um ocre convulso. Seca e lisa e sem medo diante do fogão negro debruado de amarelo areado, de entranhas estorcidas em labareda e que cavamente lhe solicitam a conivência. A Hortelinda mete-lhe de esgueira, a mão pulada logo, mais uma acha, fungando daquela permanente ameaça maior e próxima. Os troços roncam já, num fulgor acamado sobre o negro, negro e laranja e amarelo de água, barbas vivas alteando-se e esfumando espesso e a mão da Hortelinda ateia, no medo habituado. Os tachos, a colher de pau sebado entalada nas tampas, vão bafejando de oras em quando, suando sabores que se pegam aos bancos e ao ladrilho passado a pano e molhado de água secante, odor gordo, maciço e apenas diferente da grossura largada do óleo de fígado de bacalhau porque morno e pairante por toda a cara. Maina Mendes cantarola de voz rouca, grave para a goela de apito que a Hortelinda lhe diz ter, credo menina, tão caniço de pescoço e um ronco assim. Cantarola com os dedos agora franjados de massa tenra, atenta a moer nas palmas uma barriga branca para a criatura mona que a Hortelinda sempre frita no estalido do óleo quente. Assim é o contentamento de Maina Mendes. Nada na casa se concerta tanto com seu humor habitual como os crepitares e fumegares e derrocadas hostis da lenha, as frituras e águas ferventes, as muitas bocas de apelo do fogão negro. Janelas ao desejado lhe são também as fendas e forno aberto para um movimento ateado». In Maria Velho da Costa, Maina Mendes, 1969, Publicações dom Quixote, 2001, ISBN 972-201-075-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

Stonehenge. Bernard Cornwell. «O forasteiro tinha a cabeça baixa e os calcanhares pendiam-lhe quase até ao chão. Vestia uma capa de lã tingida de azul e trazia um arco na mão direita, enquanto do ombro esquerdo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Templo do Céu
«Os deuses falam por sinais. Pode ser uma folha caindo no Verão, o grito de um animal moribundo ou a ondulação feita pelo vento num lago. Pode ser o fumo junto ao solo, uma abertura nas nuvens ou o voo de uma ave. Mas naquele dia os deuses enviaram uma tempestade. Foi uma tempestade enorme, uma tempestade que seria recordada, embora o povo não nomeasse o ano por essa tempestade. Pelo contrário, chamaram-lhe o Ano em que chegou o Forasteiro. Isto porque um forasteiro chegou a Ratharryn no dia da tempestade. Era um dia de Verão, o mesmo em que Saban quase assassinou o seu meio-irmão. Naquele dia os deuses não falaram. Gritaram. Saban, como todas as crianças, andava nu no Verão. Tinha menos seis anos que o seu meio-irmão, Lengar, e como ainda não passara as provas da idade adulta, não tinha cicatrizes tribais nem marcas de morte. Mas as provas estavam apenas a um ano de distância e o pai instruíra Lengar para que levasse Saban à floresta e lhe ensinasse onde se encontravam os veados, onde se escondiam os javalis, onde ficavam as tocas dos lobos. Lengar ofendera-se com a tarefa, portanto, em vez de ensinar o irmão, arrastou-o por moitas de espinhos de modo a fazer sangrar a pele do rapaz queimada pelo sol. Nunca te vais tornar um homem, escarneceu, Lengar. Sensato, Saban nada disse. Havia já cinco anos que Lengar era um homem, de modo que tinha no peito as cicatrizes azuis da tribo e nos braços as marcas de caçador. Trazia consigo um arco feito de teixo, com pontas de osso e uma corda de tendão bem esticada e untada com gordura de porco. Vestia uma túnica de pele de lobo e tinha o cabelo comprido entrançado, atado com uma fita de raposa. Era alto, de rosto estreito, sendo considerado um dos grandes caçadores da tribo. O seu nome significava Olhos de Lobo, uma vez que o seu olhar tinha uma tonalidade amarelada. Tinham-lhe dado um nome ao nascer mas, como muitos na tribo, recebera outro ao tornar-se adulto.
Saban também era alto e tinha longo cabelo negro. O seu nome significava Favorito e na tribo muitos pensavam que era adequado, já que apenas com doze Verões, Saban prometia ser formoso. Era forte e esguio, trabalhava muito e sorria quase sempre. Lengar raramente sorria. Tem uma sombra no rosto, diziam dele as mulheres, apenas quando não as pudesse ouvir, pois era provável que Lengar viesse a ser o próximo chefe da tribo. Lengar e Saban eram filhos de Hengall, e este o chefe do povo de Ratharryn. Durante todo aquele longo dia, Lengar levou Saban através da floresta. Não encontraram veados, javalis, lobos ou ursos. Limitaram-se a caminhar, tendo chegado à tarde ao sopé da colina, para ver que toda a terra a ocidente estava sombreada por uma massa de nuvens negras. Os relâmpagos riscavam o monte de nuvens escuras em direcção à floresta longínqua, deixando o céu a arder. Lengar acocorou-se, com uma mão no arco polido, observando a tempestade que se aproximava. Devia ter já iniciado o regresso a casa, mas queria assustar Saban, de modo que fingiu não estar preocupado com a tempestade, que era uma ameaça dos deuses. Foi enquanto observavam a tempestade que chegou o forasteiro.
Montava um pequeno cavalo castanho, branco de suor. Como sela usava um cobertor de lã dobrado e as rédeas eram fios de fibra de urtiga, embora nem necessitasse delas, já que estava ferido e parecia cansado, deixando a sua pequena montada escolher o atalho que subia a escarpa íngreme. O forasteiro tinha a cabeça baixa e os calcanhares pendiam-lhe quase até ao chão. Vestia uma capa de lã tingida de azul e trazia um arco na mão direita, enquanto do ombro esquerdo pendia-lhe uma bolsa cheia de flechas ornamentadas de penas de gaivota e corvo. Usava uma barba negra e curta, e as marcas tribais do seu rosto eram cinzentas. Lengar sussurrou a Saban que ficasse em silêncio, seguindo depois o forasteiro para oriente. Lengar tinha uma flecha metida no arco, mas o forasteiro nem uma só vez se voltou para ver se estava a ser seguido, de modo que Lengar contentou-se em deixar a flecha descansar na corda. Saban gostaria de saber se o cavaleiro ainda vivia, pois parecia um morto, inerte, atirado para o lombo do cavalo. O forasteiro era um Fronteiriço. Até Saban o sabia, pois apenas o Povo da Fronteira montava pequenos cavalos peludos e usava cicatrizes cinzentas no rosto. O Povo da Fronteira era inimigo, porém Lengar não soltou a flecha. Limitou-se a seguir o cavaleiro, levando Saban atrás de si, até que por fim o Fronteiriço chegou à beira das árvores onde cresciam fetos. Aí, o forasteiro parou o cavalo e ergueu a cabeça para olhar a suave elevação, enquanto Lengar e Saban se acocoravam, escondidos por trás dele.
O forasteiro olhou os fetos e mais ao longe o pasto, onde o solo era mais fino, depois das marcações. Havia túmulos espalhados pela crista baixa do terreno. Os porcos comiam os fetos, enquanto o gado preferia a terra de pastagem. Aqui ainda havia sol. O forasteiro manteve-se muito tempo nos limites do bosque, em busca de inimigos, mas sem os ver. Para norte do sítio onde se encontrava, havia campos de trigo limitados por espinheiros, sobre os quais as primeiras nuvens, arautos da tempestade, seguiam a sua sombra; porém à sua frente havia sol. Havia vida diante de si e escuridão por trás. O pequeno cavalo, solto, agitou-se subitamente junto aos fetos. O cavaleiro deixou-se levar. O animal subiu a encosta suave até aos túmulos. Lengar e Saban esperaram até o forasteiro desaparecer no horizonte, depois seguiram e, chegando ao cimo, acocoraram-se numa vala funerária, para verem que o cavaleiro se tinha detido junto ao Velho Templo. Ouviu-se o ribombar de um trovão e uma rajada de vento alisou a erva em que o gado pastava. O forasteiro escorregou de cima do cavalo, atravessou a enorme vala do Velho Templo e desapareceu no meio das frondosas aveleiras que cresciam dentro do recinto sagrado. Saban percebeu que o homem vinha em busca do santuário. Mas Lengar estava atrás do Fronteiriço, e Lengar não era dado a piedade». In Bernard Cornwell, Stonehenge, 1999, Editora HarperCollins, 2008, Editora Record, tradutor Alves Calado, ISBN 978-850-107-985-5.

Cortesia de ERecord/JDACT