Cortesia
de wikipedia e jdact
A
«(…) Um pêndulo inlocalizável,
perdido entre trevas de armários, pingava horas abafadas num qualquer corredor
distante, atravancado de arcas de cânfora, conduzinho a quartos hirtos e húmidos,
onde o cadáver de Proust flutuava ainda, espalhando no ar rarefeito um hálito
puído de infância. As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas
gigantescas decoradas por filigranas de croché, serviam o chá em bules trabalhados
como custódias manuelinas, e completavam a jaculatória designando com a colher
do açúcar fotografias de generais furibundos, falecidos antes do meu nascimento
após gloriosos combates de gamão e de bilhar em messes melancólicas como salas
de jantar vazias, de Últimas Ceias substituídas por gravuras de batalha:
felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem. Esta profecia vigorosa,
transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de
indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de
canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso
pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para
expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados. Os homens
da família, cuja solenidade pomposa me fascinara antes da primeira comunhão, quando
eu não entendia ainda que os seus conciliábulos sussurrados, inacessíveis e vitais
como as assembleias dos deuses, se destinavam simplesmente a discutir os méritos
fofos das nádegas da criada, apoiavam gravemente as tias no intuito de afastarem
uma futura mão rival em beliscões furtivos durante o levantar dos pratos. O espectro
de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo,
salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia
corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro
passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de ardinas e marçanos, do faqueiro
de cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade
da Conferência de São Vicente de Paulo, e, por inerência, dos pobres domesticados.
O desenho que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno de uma
guilhotina libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidés
velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério
que acentua as inutilidades abandonadas. De modo que quando embarquei para
Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a
tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose,
compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser
acotovelada por uma multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da
guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.
B
Conhece Santa Margarida? Digo isto
porque, às vezes, na messe dos oficiais decorada com o mau gosto obstinadamente
impessoal da sala de espera de um dentista de Moscavide (flores de plástico,
oleografias imprecisas cujos arabescos monótonos se confundem com o papel da
parede, cadeiras hirtas semelhantes a quadrúpedes desirmanados pastando num
acaso sem simetria as franjas gastas dos tapetes), os majores em reboliço
abandonavam os copos de uísque, de cubos de gelo substituídos por dados de
pôquer, para, erectos como soldados de chumbo barrigudos, saudarem a entrada de
uma senhora que qualquer coronel subitamente urbano comboiava, deixando atrás
de si, perceptível na tremura dos galões, um rastro cochichado de cio de
caserna, que se cristalizaria em esquemas explicativos no mármore venoso dos
urinóis, destinado à alfabetização dos faxinas. A masturbação era a nossa
ginástica diária, êmbolos encolhidos nos lençóis gelados à maneira de fetos
idosos que nenhum útero desibernaria, enquanto, lá fora, os pinheiros e a névoa
se confundiam numa trama inextricável de sussurros húmidos, sobrepondo à noite
a noite pegajosa dos seus troncos, açucarados do algodão de feira popular da
bruma. Como em pequeno na Praia das Maçãs, percebe, no fim de Setembro, quando
nos deitávamos e o corpo se assemelhava a uma sementinha perdida no colchão
enorme, enrugada e trémula, agitando os filamentos peludos dos membros em
espasmos assustados pelo som do mar lá em baixo, vinde de parte nenhuma, a
retrair e a distender a bronquite pedregulhosa do seu pulmão invisível. Os
relógios de cuco davam lugar a cornetas igualmente irritantes, a farda e a pele
convergiam numa carapaça única de quitina militar, os cabelos rapados e as formaturas
traziam-me à memória as colónias de férias da infância e o seu cheiro a doce e
azedo de pouca água, feito de resignação vagamente indignada. Aos domingos, a família
em júbilo vinha espiar a evolução da metamorfose da larva civil a caminho do guerreiro
perfeito, de boina cravada na cabeça como uma cápsula, e botas gigantescas cobertas
da lama histórica de Verdun, a meio caminho entre o escuteiro mitómano e o soldado
desconhecido de carnaval. E tudo decorria, entretanto, na atmosfera de colégio interno
que os quartéis subtilmente prolongam, com os seus segredos, os seus grupos iniciáticos,
os seus estratagemas de perversidade primária destinados a iludir a vigilância
de prefeitos dos comandantes, mais preocupados com o trunfo do brídge, de cuja
escolha dependeria o rumo tranquilo ou tempestuoso da digestão do jantar, do
que com as convulsões nocturnas das camaratas perdidas atrás da caspa bolorenta
dos plátanos, onde cães magros como galgos de Greco se uniam em coitos
melancólicos, fixando-nos com olhos dolorosamente implorativos de freiras
moribundas. Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na
tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por
fantasmas de furriéis. Em Tomar, onde os peixes sobem do Mouchão para vogarem
ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, construí Jerónimos de paus de
fósforo admirados pelas escleróticas amarelas dos paraquedistas com hepatite.
Em Elvas, à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na
borda de um prato, desejei evaporar-me nas muralhas da cidade à maneira dos
violinistas de Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de
cotão das minhas mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de
exílio feita de quadros abstracto e de poemas concretos, a que o Diário de
Notícias da Casa de Portugal forneceria o lastro lusitano de anúncios de casamento
castos como notários hipermétropes, e de missas do sétimo dia adoçadas pelo sorriso
sem carne dos mortos. E em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas
bichas de soldados a caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando
de felicidade assassina: com os queixais da gajada não vai colega ter problemas,
berrava-me ele, encostado à sua cadeira horrenda, reluzente de satisfação e de
suor, a enterrar o maçarico em chamas da broca num maxilar apavorado». In
António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN
978-972-202-759-5.
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