domingo, 7 de fevereiro de 2016

Maria Stuart. Stefan Zweig. «Na realidade, seria ousadia ter a pretensão de conhecer a verdade exacta sobre todos os acontecimentos da vida de Maria Stuart. Não se poderá alcançar mais do que um máximo de verossimilhança»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nenhuma outra mulher da História universal provocou uma eclosão tão abundante de dramas, de romances, de biografias e de discussões. Durante mais de três séculos ela não deixou de atrair os poetas, de ocupar os sábios, e ainda hoje a sua personalidade se impõe, fortemente, à nossa análise. E se tudo o que é confuso aspira à claridade, tudo que é obscuro reclama luz. O mistério que rodeia a vida de Maria Stuart foi objecto de descrições e de interpretações tão contraditórias como frequentes: talvez não exista outra mulher que tenha sido pintada com traços tão diferentes: ora como assassina, ora como mártir, ora como tonta intriguista, e até como santa. Coisa curiosa: esta diversidade de aspectos não é devida à falta de materiais que chegaram até nós, mas pelo contrário, à sua confusa super-abundância, pois os autos, actas, cartas e relatórios conservados, contam-se por milhares os processos da sua culpa ou inocência foi sempre renovado por outros e sempre com elo, de há três séculos para cá, de ano para ano. Alas, quanto mais aprofundamos os documentos, mais nos apercebemos da triste fragilidade de qualquer testemunho histórico. Pois, apesar de antigo e afirmado como autêntico, não se torna por isso mais seguro e mais verdadeiro sob o ponto de vista humano. Em parte alguma se verifica, tão intimamente como aqui, a espantosa diferença que pode existir entre narrativas feitas à mesma hora, de um mesmo acontecimento, por diversos observadores contemporâneos. A cada sim, baseado em peças documentais, opõe-se um não que se apoia em provas, como a cada acusação, uma justificação. O falso enreda-se de tal maneira no verdadeiro, o fictício no real, que é impossível provar, com a maior verossimilhança, qualquer das maneiras de ver as coisas: quem quiser demonstrar que Maria Stuart foi cúmplice do assassinato de seu marido, consegue produzir testemunhos às dúzias, assim como aquele que queira provar a sua inocência; para cada pintura do seu carácter, estão as tintas previamente misturadas. Se a parcialidade da política ou do patriotismo pretende juntar-se à confusão dos relatos, torna-se ainda maior a alteração do retrato. Além disso, logo que surge uma questão de ser ou não ser entre dois homens, duas ideias, dois conceitos sociais, a natureza humana não se pode subtrair à tentação de dar razão a um e não a dar a outro, de apontar um como culpado e o outro como inocente. E quando, como no caso presente, os biógrafos da heroína pertencem, na maior parte, a duas correntes, a duas religiões ou a duas concepções sociais opostas, a sua opinião está obrigatoriamente formada de antemão; em geral, os autores protestantes atiram com as culpas para Maria Stuart, ao passo que os autores católicos acusam Isabel. Pelos escritores ingleses, a rainha da Escócia é quase sempre descrita como uma assassina; os escritores do seu país, os escoceses, apresentam-na como vitima inocente de uma infame calúnia, uns atestam a autenticidade das cartas do guarda jóias, o ponto mais discutido, tão energicamente como outros afirmam a sua falsidade; o facto mais insignificante constitui matéria de discussão. Eis porque talvez seja possível, a quem não for inglês nem escocês, a quem não estiver embaraçado pelos preconceitos de raça, ser mais objectivo e abordar esta tragédia com toda a paixão, mas com toda a imparcialidade de artista. Na realidade, seria ousadia ter a pretensão de conhecer a verdade exacta sobre todos os acontecimentos da vida de Maria Stuart. Não se poderá alcançar mais do que um máximo de verossimilhança; e mesmo o que se julga de boa fé ser puramente objectivo, será sempre subjectivo. Uma vez que as fontes não são puras, será preciso fazer brotar luz da obscuridade; como as narrativas contemporâneas se contraditem, dever-se-á, em presença do mais insignificante por menor deste processo, escolher entre os testemunhos pró ou contra. E por muito prudente que se possa ser na escolha, o historiador será obrigado, muito honestamente, a acompanhar a sua opinião com um ponto de interrogação e de confessar que este ou aquele acto da vida de Maria Stuart ficou obscuro e ficá-lo-á provavelmente para sempre. O carácter de Maria Stuart está longe de ser assim tão misterioso: não lhe falta unidade senão nas suas manifestações exteriores; interiormente, é rectilíneo e claro, de princípio ao fim. Maria Stuart pertence a este tipo de mulheres muito raras e atraentes cuja capacidade de vida real está concentrada num espaço de tempo muito curto, que desabrocham de uma forma efémera, mas poderosa, que não consomem a sua vida ao longo de toda a existência, mas no quadro restrito e ardente de uma única paixão. Até aos vinte e três anos, a sua alma respira a calma e a quietação; depois dos vinte e cinco, não voltará a vibrar intensamente, uma única vez; mas entre estes dois períodos revolve-a um furacão e, de um destino banal, nasce, de súbito, uma tragédia de dimensões antigas, talvez tão grande e tão forte como a de Orestes. Apenas durante estes dois anos, é Maria Stuart uma figura verdadeiramente trágica; sob o efeito da sua paixão desmedida, eleva se acima de si própria, destruindo a sua vida e imortalizando-a». In Stefan Zweig, Maria Stuart, 1935, 821.1122(436), tradução de Alice Ogando, Porto, Livraria Civilização, 1948.

Cortesia de LCivilização/JDACT