quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Balthazar. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «… a verdade é o que mais se contradiz com o decorrer do tempo. Quando se colhe uma flor, a haste volta a endireitar-se. Mas isso não é verdade com as afecções do coração…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas espere um pouco..., antes de ir... Vi-o desaparecer numa cabina e reaparecer pouco depois para atirar ao mar qualquer coisa que veio cair a meu lado com um ruído doce: é uma rosa de Alexandria, disse, da cidade que oferece tudo aos seus amantes menos e felicidade. Soltou uma risadinha irónica: ofereça-a à criança. Adeus, Balthazar. Escreva-me..., se tiver ânimo para tanto! Aprisionado como uma aranha entre a teia de luzes, e voltando-me para a esteira amarelada que ligava o navio à praia invisível, acenei um adeus e Balthazar agitou a mão. Coloquei a preciosa rosa entre os dentes e comecei a aproximar-me da praia, dando braçadas irregulares e falando para mim próprio. E ali estava sobre a mesa, à luz do candeeiro, o grosso manuscrito comentado de Justine, fora este o título que eu lhe dera. Balthazar cobrira-o de notas quase ilegíveis, perguntas e respostas escritas em tintas de cores diferentes, algumas mesmo datilografadas. Agora parecia-me até de certa forma um símbolo da própria realidade que tínhamos participado, um palimpsesto sobre o qual cada um de nós tinha deixado os seus vestígios pessoais, camada sobre camada. Será necessário aprender a ver com novos olhos, habituar-me às verdades que Balthazar acrescentou? É impossível descrever com que emoção li as suas notas, algumas vezes tão pormenorizadas, outras vezes tão desconcertantemente breves, como, por exemplo, na lista que intitulou Falácias e falsas interpretações, onde afirma friamente: número 4; que Justine o amava a si. Se ela amava alguém, esse alguém era Pursewarden. Que significa isso? Ela via-se forçada a utilizá-lo como um espantalho para proteger o amante contra os ciúmes do marido. Pursewarden, por sua vez, não queria saber dela para nada, lógica suprema do amor.
E a cidade ergue-se uma vez mais na minha mente contra a superfície plana e polida do lago verde e os afloramentos de pedra mole que assinalam os limites do deserto. A política do amor, as intrigas do desejo, o bem e o mal, a virtude e o capricho, o amor e o crime, movem-se obscuramente nos recantos tenebrosos de Alexandria, nas suas ruas e praças, nos seus bordéis e salões, movem-se como grandes migrações de enguias na vasa das tramas e contratramas. Era quase dia quando me desprendi do fascinante montão de folhas com os seus comentários sobre a minha verdadeira vida (interior) e, como um ébrio, fui aos apalpões cair sobre a cama, a cabeça em fogo, cheia de ecos da cidade, a única cidade do mundo onde as raças e os costumes mais estranhos se casam e se misturam, onde se entrecruzam os destinos menos comuns. Até adormecer pareceu-me ouvir a voz seca do meu amigo, perguntando: até que ponto deseja saber a verdade... Que mais deseja saber? Desejo saber tudo para poder libertar-me finalmente da cidade, respondi em sonhos. Quando se colhe uma flor, a haste volta a endireitar-se. Mas isso não é verdade com as afecções do coração, disse Clea certa vez a Balthazar. E assim, lentamente, relutantemente, regressei ao ponto de partida, como um homem que no fim de uma terrível e inevitável jornada descobre que percorreu todo o caminho a dormir. A verdade, disse-me uma vez Balthazar assoando o nariz numas velhas peúgas de ténis, a verdade é o que mais se contradiz com o decorrer do tempo. E Pursewarden noutra ocasião não menos memorável: se as coisas fossem sempre o que parecem ser, como se encontraria empobrecida a imaginação dos homens! Como me libertarei dessa prostituta entre as cidades, mar, deserto, minarete, areia, mar? Não. Tenho de pôr o preto no branco, friamente, até que todo o desejo e recordação se desvaneçam. Bem sei que a chave que procuro se encontra dentro de mim.
Capodistria costumava chamar-nos Le cénacle nesses dias em que nos encontrávamos para o ritual de fazer a barba no salão ptolomaico de Mnemjian, com os seus espelhos e palmeiras, as suas cortinas de missanga e a deliciosa imitação da água tépida e toalhas limpas: aquilo tinha um ar comovedor de embalsamamento de cadáveres! O corcunda de olho violeta oficiava em pessoa porque éramos clientes importantes (faraós mortos no seu banho de carbonato de sódio, cérebro e vísceras a remover purificar e restituir aos seus lugares). O barbeiro muitas vezes não tinha tido sequer tempo de se barbear, tendo chegado a toda a pressa do hospital onde acabava de escanhoar um morto. Encontrávamo-nos aqui nas cadeiras acolchoadas, diante dos espelhos, por um breve instante, antes de nos dirigirmos às nossas respectivas ocupações: Da Capo para se encontrar com os seus corretores, Pombal para a sensaboria do consulado francês (maldisposto, boca amarga, sensação de ter caminhado toda a noite de cabeça para baixo), eu para a escola onde ensinava, Scobie para a repartição da polícia, e assim por diante...» In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1958, Balthazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT