quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

História da Vida Privada. Paul Veyne. «A família romana, para falar só dela, parece-se tão pouco com a sua lenda ou com o que chamamos de família… Mas, então, por que não os gregos? Porque os gregos estão em Roma…»

Cortesia de wikipedia

Do Império Romano ao Ano Mil
«De César e Augusto a Carlos Magno, e até à ascensão dos Comneno ao trono de Constantinopla, este livro abrange oito ou mesmo dez séculos de vida privada. Não deixa de haver lacunas, que são intencionais; um inventário completo não teria atractivos para um leitor erudito. Conhecem-se muitos séculos através de uma documentação tão pobre que não tem vida; o tecido desse milénio está crivado de lacunas esparsas. Nesse manto excessivamente grande preferimos recortar fragmentos mais ou menos coerentes, cujas imagens ainda se animam. Primeiro fragmento: o Império Romano na época do paganismo, relatado com detalhes suficientes para ressaltar o contraste da cristianização; devemos agradecer ao grande historiador Peter Brown por se ter encarregado de colocar tal ácido no reagente. Esse quadro de duas faces, paganismo e cristianismo, articula-se, portanto, como um drama: o drama da passagem do homem cívico ao homem interior. Segundo fragmento: o quadro material da vida privada; a casa, na Antiguidade pagã e cristã, é estudada em detalhe, menos na materialidade do que nas funções, na arte e na vida; parece-nos que se trata de um estudo muito novo. De início quisemos equiparar a abordagem da arquitetura privada ao estudo da arquitetura pública urbana que, na Histoire de la France urbaine, ocupa amplo espaço no texto. A nossa segunda razão é o grande interesse do público actual pela arqueologia; no Verão vemos os turistas aglomerarem-se em grande número nos sítios de pesquisa, com o guia nas mãos. O guia, porém, não é tudo: não pode ensinar a ver, a interpretar pobres restos, a reconstruir mentalmente as paredes, os andares e o telhado de uma casa reduzida aos alicerces, a imaginar os habitantes, as suas ocupações, a sua circulação dentro da casa, a sua promiscuidade ou o seu distanciamento.
Terceiro fragmento: a Alta Idade Média ocidental e o Oriente bizantino. No século V de nossa era, o Império Romano perde as suas províncias ocidentais, onde os bárbaros delimitam reinos. Reduzido à metade oriental, o Império Romano continua; a civilização bizantina não é outra coisa senão a continuação da Antiguidade romana, transformada pouco a pouco apenas pela força do tempo que passa. Dois quadros contrastados fazem ver, no espírito da nova história, a vida do Ocidente merovíngio e carolíngio e do Império Bizantino na época da dinastia macedónia. Por que começar com os romanos? Por que não com os gregos? Porquê os romanos? Porque a sua civilização seria o fundamento do Ocidente moderno? Não sei. Não se tem a certeza de que seja tal fundamento (importam muito mais o cristianismo, a tecnologia e os direitos do homem); não percebemos bem o sentido exacto que devemos dar ao termo fundamento para evitar que uma discussão sobre o assunto conduza a meras divagações de conotações políticas ou didácticas. Enfim, podemos achar que um historiador não tem necessariamente como função reconfortar arrivistas nas suas ilusões genealógicas. A história, essa viagem ao outro, deve servir para nos fazer sair de nós, tão legitimamente quanto nos confortar em nossos limites. Os romanos são prodigiosamente diferentes de nós e, em matéria de exotismo, nada têm a invejar aos ameríndios e aos japoneses. Essa foi uma primeira razão para começar a presente história por eles: para mostrar um contraste, e não o futuro Ocidente delineando-se. A família romana, para falar só dela, parece-se tão pouco com a sua lenda ou com o que chamamos de família…
Mas, então, por que não os gregos? Porque os gregos estão em Roma, são o essencial de Roma; o Império Romano é a civilização helenística nas mãos brutais (também aqui, nada de sermões humanistas) de um aparelho de Estado de origem italiana. Em Roma, a civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião provieram quase inteiramente dos gregos ao longo de meio milénio de aculturação; desde a sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era menos helenizada que outras cidades da Etrúria». In Paul Veyne (organização, História da Vida Privada, do Império Romano ao ano mil, tradução de Hildegard Feist, colecção de Philippe Ariès e Georges Duby, Companhia de Bolso, ePub, 1985, Companhia das Letras, 2009, ISBN 978-853-591-378-1.

Cortesia de CBolso/CLetras/JDACT