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Conforme o original
O prior do Hospital
«(…) O logar de Tristão
achava-se vago na Mesa redonda dos cavalleiros: foi esse logar que Nun’Alvares,
ou Galaaz, preencheu. Era um sólio perigoso, uma cadeira de morte, que acabava
com todos os que nella se sentavam. Quando o heroe appareceu na sala,
cerraram-se todas as portas e janellas por encanto; mas um raio de sol,
entrando milagrosamente, illuminou em cheio a figura do heroe que aparecia armado
de loriga e bravoneiras, com dois signaes vermelhos sobre o braço. Por onde
entrara? Ninguém o vira. Com elle vinha um ermitão, que assim disse para o rei
Arthur: eu te trago o cavalleiro desejado que vem d’el-rei David e de José d’Arimathea,
por quem as maravilhas d’esta terra e das outras haverão acima. E Galaaz
sentou-se na cadeira terrível, dizendo todos compassadamente: Galaaz, sêde o
bem-vindo! Era aquelle o bastardo de Lançarote do Lago, sobrinho do rei Marte
da Cornualha: o cavalleiro de quem Merlim e os prophetas haviam fallado como o
que descobriria o Santo Graal, terminando assim as aventuras do reino de Logres.
Era elle que havia de descobrir o sacrario da pátria, dando a commungar aos
seus filhos a hóstia santa do sacrifício; era elle quem terminaria, também, as
aventuras do reino de Portugal, com façanhas que gradualmente iam avultando na
sua imaginação, á medida que os annos cresciam, e, com o crescer, o sol da
vida, subindo, ia desmanchando as névoas da flor da terra. Em torno da Mesa
sentavam-se, confundidos em admiração, os cento e cincoenta cavalleiros
presididos pelo rei Arthur. Eram Booz de Gaunes, o velho pae do presidente e do
imperador Alaino de Constantinopla, nascido de uma filha do rei da
Gran-Borgonha, que o seduzira por encantamento, obrigando-o a mentir aos votos
de castidade; era Percival, de Galles, e Eric, o filho d’el-rei Lot; eram Ganet
e Garriet, Leonel e Brandinor, Ocursus-o-negro, Orinides-o-branco, e Sagramor,
e Gardamontanha, mais Arnal-o-formoso, com Martel-do-grande-escudo, e os outros
em cujo gremio entrava Galaaz, como Nun’Alvares, quando o pae o levou á corte d’el-rei
Fernando I, em 1373.
A idéa da partida para
Santarem, á corte, apparecia-lhe como a do seu heroe para a sala dos
cavalleiros: ia sentar-se ahi na cadeira vasia e terrível, para vencer o Fado n’uma
successão de aventuras e façanhas inauditas. Também levava uma armadura forjada
com o lume da virtude; e mais de uma vez simulara com os ermitões do Bomjardim
a scena do cemitério, quando Galaaz quis ver a campa do cavalleiro desleal
sobre que os demonios dançavam em permanencia. O defunto gemia agonias no seu
tumulo, ensombrado por uma velha arvore, e, soluçando, pedia a Galaaz que se afastasse;
mas o cavalleiro impavido levantou a campa, d’onde sahiu um fumo negro como
pez, depois chammas, depois o próprio demónio em pé : ai, Galaaz, santa coisa
vejo em ti… Vejo-te cercado d’anjos, que não posso durar contra ti. E porém te
deixo o meu logar, em que longo tempo folguei… E foi-se o diabo. No fundo do
tumulo estava o defunto armado. E a historia termina dizendo que a campa do moimento
demonstra a dureza dos corações que Nosso Senhor achou no mundo, quando aqui
veio. porque na terra nom achou el se nom duros corações: e bem parecia, porque
o filho não amava o pae. nem o pae o filho, e por isto iam todos ao inferno.
Já as historias tinham
um symbolismo moral; e esse momento novo da educação entrava no espirito do
nosso heroe, apresentando-lhe a vida como um exercício de virtude, ensinando-lhe
que o mérito das acções não está no que são, mas sim no que significam;
dizendo-lhe que o supremo destino da existência é converter os homens ao bem,
levantando de sobre elles a campa dos pecados da carne, em corações endurecidos
pela vida bravia dos tempos. Por isso o ermitão acompanhara sempre Galaaz, para
lhe mostrar a significação e o alcance dos lances da sua vida aventurosa, como
os coros da tragedia antiga, commentando as acções dos heroes. E Nun’Alvares
relia a falla do ermitão, onde se faz a apotheose da bastardia, considerando-se
necessário o peccado de origem para a consummação das façanhas: filho! Coisa
santa e honrada, flor e louvor de todos os mancebos, outorga-me, se te praz,
que te faça companhia em toda a minha vida, emquanto te puder seguir... E não
sei no mundo que hoje me podesse confortar mais, como ver tão santo cavalleiro,
como tu has de ser. E como tu verás maravilhas que excederás; porque Deus, que
te fez nascer em tal peccado, como tu sabes, por mostrar seu grande poder, essa
grande virtude te outorgou por sua piedade e pela boa vida que tu começaste de
tua meninice até aqui, que te dará poder, e força, e bondade de armas e de
ardimento sobre todos os cavalleiros que nunca trouxeram armas no reino de
Logres (ou de Portugal?) assim que tu darás acima a todas as outras maravilhas
e aventuras, onde todos falleceram e fallecerem. E quero todos teus feitos
saber que acabarás, pois foste feito em tal peccado, onde os outros não poderam
vir, que foram feitos em leal casamento…
Assim educado, partia
Nun’Alvares para a corte aos treze annos. A própria bastardia que, embora
corrente e commum no tempo, podia levantar-lhe pensamentos deprimentes do
animo, encontrava sancção e apotheose nos livros da sua paixão. Os bastardos
eram eleitos. Deus escolhia os manchados por esse peccado de origem. A virtude
do peccador é preferente. Ia disposto a exceder todas as façanhas e prodígios,
de valor e de abnegação. Floria-lhe o lyrio da virtude cândida na alma ingénua;
pulava-lhe nas veias o sangue com os impulsos da força exuberante». In
Oliveira Martins, A Vida de Nun'Alvares, História do estabelecimento da
dinastia de Avis, Livraria de António Maria Pereira, Editor, 1893, Makew
Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented to Brandies University,
1961.
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