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«(…) Ah, o final, sim, é isso: érades boa para rei. Apesar das diatribes, das críticas, dos ralhos
que ela escutava serenamente e, no fundo, não lhe causavam sequer tristeza
porque sabia que Deus e os Santos estavam do seu lado. E o rei, alavarentado,
remexendo a fulva cabeleira que lhe emoldurava o rosto, saía do aposento, e não
tornava ao assunto: érades boa para rei.
E, na realidade, dona Doce, se não fosse a presença forte, discreta, apesar
disso, de dona Isabel, o reinado não teria ultrapassado as vicissitudes por que
passou. Houve uma pessoa que conheceu minha santa mãe, era assim que a tratav,
melhor que todos, que eu, o marido, os filhos, o próprio irmão, porque dona
Isabel também a trouxe no seu séquito com o meio-irmão Pedro. Foi uma grande
dama que, infelizmente, já morreu: dona Vataça Lascaris, descendente dos
Imperadores de Bizâncio, mais tarde casada com um fidalgo português. Um
casamento sem filhos e pensa-se até que o marido, velho e gasto, seria incapaz
de praticar as suas obrigações matrimoniais... Mas dona Vataça ficou rica,
poderosa e foi a sua grande confidente, a sua alma gémea. Quando vínhamos de
Alcanises, dona Vataça, que era muito bela, com seu rosto de grega, aquele
perfil cortado em asa, o nariz direito, os olhos negros, rasgados, luminosos, a
boca carnuda, jovem, alegre, afagava-me e eu percorri o caminho no colo da dona
Isabel e no dela, como se sentisse no seio daquelas duas mulheres ternas o
ventre aconchegado, quente e macio da minha mãe carnal. E até sonhei, como a
memória da pequena infância é tão perfeita e duradoura, minha querida! A bruma
dos sonhos torna-os às vezes mais reais do que a verdade, porque é o produto do
milagre, do recanto sagrado do espírito que nos envolve o pensamento, um dom de
Deus. Terei de chamar, depois, dona Branca e as outras amas... Mas é cedo.
Melhor, tarde, porque não dormimos, minha querida. Não, não vos deiteis aí.
Pareceis um cãozinho sobre os meus pés. Que pena não ter trazido comigo Isaac
porque tenho febre... Ou o sabidão do Dionísio, aquele outro judeu de
Alexandria! Enfim, estamos na mão de Deus.
A minha vida decorreu, até ao casamento, e depois dele, sob
a influência daquela santa mulher que conhecestes, a boa rainha dona Isabel.
Ela tudo me ensinou e, sobre todas as coisas, o amor, a compaixão, o respeito
pelos pobres, a doação completa da nossa alma pelo amor de Deus e das suas
criaturas. E o que ela sofreu! Amava o marido que, Deus lhe perdoe, foi sempre
infiel e lhe encheu a casa de bastardos que ela aceitou. Um dia dona Vataça
perguntou-lhe o porquê daquela sua teimosia em tratar e amamentar os filhos
espúrios de el-rei. E ela respondeu: porque são filhos de rei. Não devem ser
tratados de outra forma. Em certa medida são uma reserva do país que somos, de
Portugal, Senhora. Hoje entendo o que ela quis dizer. Só hoje. Eram quase
todos mais velhos que o seu filho, o nosso rei esSenhor, meu marido, mas um foi
o seu grande inimigo, Afonso Sanches, que, tendo mais dois
anos que meu esposo, era o preferido do pai. Foi poeta também, sabeis? Nasceu
três anos depois da criação do curso do ensino da Teologia, por conselho da rainha,
e um ano antes do estabelecimento do Estudo Geral. Afonso, o nosso senhor e rei,
só foi parido em Fevereiro de l329, no dia oito. Como é do vosso conhecimento,
os judeus são mestres exímios na arte dos astros que herdaram dos Caldeus e a
medicina e a astrologia estão ligadas intrinsecamente... Lá estou eu a
perder-me…, com mil recordações!... Mas não importa! Pois dona Isabel trouxera
de Aragão uma Corte colorida e rica de gente de saber e cultura. Os físicos,
todos judeus, poetas, e alguns do Languedoc francês e até desconfio que
cátaros, pois o avô Jaime, o Conquistador,
protegia-os e deixou-os exilarem-se na Catalunha, sei lá que mais de gente!» In
Seomara Veiga Ferreira, Inês de Castro, A Estalagem dos Assombros, Editorial
Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3716-8.
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