quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Viriato. Teófilo Braga. «… os Portugueses são naturalmente sofredores e pacientes: muito arrochada há de ser a corda com que de mãos e pés os atam seus opressores, antes que rompam num só gemido os desgraçados»

Cortesia de jdact e wikipedia

Narrativa epo-histórica
«A Alma portuguesa carateriza-se pelas manifestações seculares persistentes do tipo antropológico e étnico, que se mantêm desde as incursões dos Celtas e lutas contra a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da orgia militar napoleónica. São as suas feições: a tenacidadeb e indomável coragem perante as maiores calamidades, com a fácil adaptação a todos os meios cósmicos, pondo em evidencia o seu génio e acção colonizadora; uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam às aventuras heróicas, e à idealização afectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte; capacidade especulativa pronta para a apercepção de todas as doutrinas científicas e filosóficas, como o revela Pedro Julião (Hispano), na Idade Média, Francisco Sanches, Garcia da Orta, Pedro Nunes e os Gouveias, na Renascença; Um génio estético, sintetizando o ideal moderno da Civilização ocidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt como o Homero das línguas vivas. O cantor das grandes Navegações foi quem teve a mais alta compreensão do génio nacional; a alma Portuguesa achou no seu Poema a incarnação completa. Quando Camões descreve nos Lusíadas, geográfica e historicamente Portugal, referindo-se à tradição da antiga Lusitânia, relembra o vulto que simboliza a sua vitalidade resistente, diante da incorporação romana da península hispânica:

Eis aqui, quase cume da cabeça
da Europa toda, o reino Lusitano,
onde a terra se acaba, e o Mar começa,
e onde Febo repousa no Oceano.

Esta é a ditosa Pátria minha amada,
esta foi Lusitânia.

Desta o Pastor nasceu, que no seu nome
se vê que de homem forte os feitos teve;
cuja fama ninguém virá que dome,
pois a grande de Roma não se atreve.
(Canto III, st. XX a XXII)

Deixo... atrás a fama antiga
que com a Gente de Rómulo alcançaram,
quando com Viriato na inimiga
guerra romana tanto se afamaram.
Também deixo a memória, que os obriga
a grande nome, quando a levantaram
por um seu Capitão, que, peregrino,
fingiu na Cerva espirito divino.
(Canto I, st. XXVI)

No tempo do grande épico ainda se não tinha perdido o conhecimento da relação de continuidade histórica entre Portugal e a antiga Lusitânia, mais vasta e por isso mais violentamente retalhada pela administração imperial romana. Esse conhecimento, embora confundido com as lendas sincréticas dos falsos Cronicões, influiu na consciência do nosso individualismo étnico e nacional. O esforço de desnacionalização de Portugal pela política da unificação ibérica, veio até reflectir-se nos próprios historiadores pátrios, levando-os a considerar Portugal uma formação recente, adventícia, sem individualidade, e a Lusitânia quase como uma ficção banal dos eruditos da Renascença! Mas o carácter persistente do tipo português, a resistência tenaz contra todos os conflitos da natureza e pressões da vida, que tanto o distingue entre os povos modernos, é a prova manifesta da raça lusitana como a descreveram os geógrafos gregos e romanos. Nas lutas pela liberdade territorial a Lusitânia deixou nos historiadores greco-latinos o eco da sua resistência indomável, sobretudo no Ciclo das Guerras viriatinas, que se reacenderam ainda sob o comando de Sertório. Pela sua genial intuição teve Garrett a compreensão deste carácter resistente e sofredor da nossa raça lusitana: os Portugueses são naturalmente sofredores e pacientes: muito arrochada há de ser a corda com que de mãos e pés os atam seus opressores, antes que rompam num só gemido os desgraçados. Um murmúrio, uma queixa... nem talvez no cadafalso a soltarão! Vendem-nos os desleais pegureiros de quem nos deixamos governar; vendem-nos, enxotam-nos para a feira a cajado e a latido e mordedela dos seus mastins; e nós vamos e nem gememos. Se um clamor de queixumes, se uma voz de desconfiança acaso surde, aqui os clamores de rebeldes, os alcunhas de demagogos... e a nação (o rebanho, direi antes) que se resigna e sofre, e continua a caminhar para o exício! Tal é, com as diferenças de variados nomes e datas, a história de Portugal quase desde que a revolução ou restauração (restauração seria?) de 1640 fez da nação portuguesa o património de meia dúzia de famílias privilegiadas e dos seus satélites e parasitas. (Carta de M. Cévola, 1830.) Simbolizamos esta resistência, vivificando o tipo de Viriato, reconstruindo poeticamente as situações lacónicas referidas nos historiadores clássicos; representamos artisticamente essa fibra que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a marcha da Civilização se afirma através dos cataclismos políticos a Alma Portuguesa». In Teófilo Braga, Viriato, 1904, ePub, Perses, Apelron, 2013, ISBN 978-989-554-416-5.

Cortesia de Perses/Apelron/JDACT