quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Contos e Fantasias. Maria Amália Carvalho. «Foi assim que Margarida fez nove anos. Era linda e indómita. Tinha um corpo airoso, flexível e forte. Ninguém oprimira nunca aquela altiva natureza aristocrática. Daí a sua isenção, a liberdade dos seus movimentos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma história verdadeira
«(…) Pelo contrário! Admirava-o! Sim; ela dera-lhe essa sensação poderosa e extraordinária, a sensação dos que se veem admirados com ingénua confiança. Margarida pedia-lhe coisas enormes, com uma serenidade inefável de crente! Pedira-lhe um ninho de melros, e o que é mais! Conseguira que ele tão medroso, tão débil, tão assustado, trepasse pelos braços nodosos de uma grande árvore e lho fosse buscar lá acima. Que triunfo, ao ver satisfeito o seu capricho! Mas que triunfo maior ainda o dele ao compreender, que alcançara essa coisa prodigiosa, que nem nos sonhos mais arrojados das suas noites de febre ele ousara até ali conceber! Um dia Margarida, em frente daquele rasgo assombroso de valentia que colocara Tadeu ao lado dos maiores heróis, pusera-se grave, meditativa, e apontando com serena majestade para a lua que se reflectia num tanque do jardim, pedira a lua ao seu amigo Tadeu! Está claro que ele lha não pôde dar, mas gostou daquilo! Percebeu que o julgavam capaz de coisas grandes, de levar a cabo empresas impossíveis, e esta ideia que alguém tinha da sua força, fê-lo crescer aos seus próprios olhos. O marquês conhecendo que o pequeno deixara de ser o seu joguete, simplesmente para ser o joguete da sua filha e herdeira, aplaudiu de lhe haver dado aquela educação especial, e proibiu que o distraíssem, fosse sob que pretexto fosse, das suas novas funções. Margarida era ainda muito pequenina para entreter os pais. Ele precisava das excitações da política, das lutas do parlamento, dos sorrisos falsos ou verdadeiros, caros ou baratos das formosas mulheres, do jogo, da ambição, do amor, da violência corrosiva de todas as pequenas e grandes paixões!
Ela precisava do luxo, das jóias que cintilam, das sedas que se quebram em ondulações brilhantes, do coro das adulações mentidas, de todas as efémeras alegrias que só o mundo lhe podia dar. Para ambos, Margarida seria um remorso, se a não vissem tão feliz, tão roliça, tão alegre, com chispas de travessura maliciosa no olhar, sempre acompanhada do seu pequeno amigo, submisso e fiel como um cão. Deixaram-nos, pois, crescer e viver juntos sob o olhar das aias, sempre um pouco hostil para Tadeu e por isso tanto mais insuspeito. Foi o verdadeiro paraíso que este conheceu na terra, foi a sua idade de ouro. Há seres que nunca nem por um instante só conheceram a completa ventura. São de todos os mais desgraçados. Tadeu mais tarde podia ao menos recordar-se! E ele sabia apreciar também aquelas alegrias que em manhã abençoada tinham caído sobre a sua pobre cabeça!... Um dia Margarida travessa e caprichosa como era, desatendendo todas as advertências de Tadeu, deixara-se cair dentro do tanque do jardim. O pequeno não sabia nadar. Que importa! Sem premeditação, sem raciocínio, obedecendo a um instinto de dedicação inteiramente canina, deitou-se na água atrás dela. As criadas, acudindo, tiraram do tanque as duas crianças abraçadas. Imagine-se o que iria em casa! Tadeu, castigado severamente, não quis condenar a sua amiguinha, para se salvar a si. Foi ela que, soberba, graciosa, com a sua majestade de pequena rainha, disse aos pais: não batam nele. Ele pediu-me que não fosse. Eu é que quis ir. Acharam-na adorável; encheram-na de carícias e de gulodices, mas ninguém pensou na acção tão simples e tão heróica do pequeno Tadeu, a quem tinham posto a alcunha de medroso.
Foi assim que Margarida fez nove anos. Era linda e indómita. Tinha um corpo airoso, flexível e forte. Ninguém oprimira nunca aquela altiva natureza aristocrática. Daí a sua isenção, a liberdade dos seus movimentos, o fulgor radioso dos seus grandes olhos azuis, onde um observador veria talvez as cintilações metálicas que davam tamanha dureza ao olhar da sua mãe. Margarida tinha uma vontade de ferro, e uns nervos de mulher caprichosa. Quando a professora alemã que os seus pais mandaram buscar, quis sujeitar o seu espirito a uma certa disciplina, Margarida revoltou-se num ímpeto de insubordinação selvática. Tivera criadas que a serviam, um escravo que tremia à frente dela, e pais que transigiam com todos os seus pequenos desejos de criança. Dera-se bem naquele meio, não queria outro, não o aceitava, nem curvaria a sua cabecinha erecta e firme com uma auréola de anéis de ouro a cercá-la, a nenhum domínio que não fosse o da sua vontade. Um dia Tadeu ouviu falar vagamente numa viagem que os seus tios iam fazer ao estrangeiro, e viu começar os preparativos para ela. Ficou no céu. Viveria só na grande casa com Margarida e o rancho dos criados. Seriam livres. Ela teria um balouço no jardim, uma rede brasileira no quiosque, e um barquinho no lago. Eram os seus três sonhos ainda irrealizados. Tadeu dirigiria todos os trabalhos. Diria aos operários que tinha dezasseis anos, e que era sobrinho do marquês». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT