domingo, 14 de fevereiro de 2016

A Paixão segundo Constança H.. Maria Teresa Horta. «Só que desta vez nenhum deles se atrevia a fazer o primeiro gesto de fuga. A pele de Henrique H., mantinha um tom vivo, róseo, devido à temperatura da água que o cobria»

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«(…) Não se entregavam mais. E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si. O ódio. O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo e por isso mesmo com uma incidência única em todos os momentos da vida a partir desse momento: quando Henrique falou. Quando Henrique falou da sua traição. É o amor que me perde, pensa Constança. O ódio, pelo contrário, alimenta-a. O amor queima-a, desguarnece-a. O amor reduz a cinzas, é a porta do caos e do desassossego. Quebra-a. Quebra-a.
O ódio, pelo contrário, fortalece-a. Pertinaz, forra-lhe as emoções, nunca a entrega. E a odiar, as mulheres são melhores que os homens. Como diz Françoise Giroud, elas podem ser duras e frias como pedras, com arame farpado no coração. Constança sabe, sente-o crescer no seu peito, como se fosse uma planta, tomando conta de todo o seu imaginário, de todos os seus sentimentos, de todos os seus pensamentos: o arame farpado. No seu coração palpitante e incandescente.
Conturbado, turvo. O ódio centrado. Quase visto, quase tocado. Tocado. Henrique H. matou-se um ano depois da prisão de Constança. Cortou os pulsos dentro do banho. Foram os filhos, quando chegaram do colégio, que deram com ele na banheira, a cabeça inclinada, encostada a nuca no rebordo de mármore cor-de-rosa pálido. Parecia dormir. As pestanas pretas e grandes sombreando os olhos verde-musgo, apenas entreabertos. A boca fechada num ricto duro. E toda aquela água de um vermelho diluído â escorrer para o chão de azulejos pretos até à alcatifa do corredor, que começava a ficar empapada ao pé da porta onde eles permaneciam muito quietos e mudos a olharem o pai morto na banheira, um dos pulsos aberto pendente sobre o lençol turco caído no chão e o outro pulso debaixo de água, como que a descansar em cima do peito. A ferida do pulso que caía para fora da banheira fez-lhes lembrar a do pescoço de Adele, os bordos abertos um pouco afastados, o sangue a coagular já, num simulacro grosseiro de uma cicatriz. O ruído da água que continuava a correr, fumegante, submergindo quase o corpo imóvel do pai, recordou-lhes igualmente o barulho molhado das ondas, quando eles começaram a correr para casa depois de o imenso grito ter varado as areias geladas da manhã para ir perder-se, estrangulado, de súbito, numa espécie de soluço, num gorgolhar rasgado. Só que desta vez nenhum deles se atrevia a fazer o primeiro gesto de fuga. A pele de Henrique H., mantinha um tom vivo, róseo, devido à temperatura da água que o cobria.
O mar. Sempre ao fundo da paisagem. A marcar o horizonte. Sonhava que corria sozinha na praia de areia molhada. Nunca sonhava com os filhos. Ela não sabia que tinha filhos. Não se lembrava? O teu corpo, a febre acesa da tua língua, meu amor! ... a partir do clítoris De bruços De borco... o teu pénis As mãos subindo, trepando pelo avesso do corpo Constança H. Como se tacteasse na escuridão de uma gruta húmida; na penumbra encoberta de um confessionário; na cela nua de uma prisão de mulheres; na enfermaria de um hospital psiquiátrico». In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT