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«(…) Então gostou?, crocitou o
inválido num tom onde flutuava (como uma mancha de óleo à superfície da água) o
orgulho e a suspeita. Um criado negro, gigantesco, rolou uma mesa onde havia
copos e uma garrafa de uísque, estranha anomalia: bebiam cocktails pôr do Sol, como quaisquer coloniais, nesta velha casa
inundada de tapetes magníficos, em cujas paredes se ostentavam as zagaias
tomadas em Omdurman e em cujas salas se viam estranhos móveis Segundo Império
fabricados na Turquia. Sente-se, disse o velho, e Mountolive, sorrindo-lhe,
sentou-se, notando que mesmo aqui, nas salas de visitas, havia livros e jornais
por toda a parte, símbolos da fome insaciável de Leila pelas coisas do saber. Normalmente
ela guardava os seus livros e jornais no harém, mas acabavam sempre por inundar
a casa. Seu marido não participava desse mundo. Tanto quanto possível ela
evitava torná-lo consciente desse facto, temendo o seu ciúme que crescia à medida
que a doença se agravava. Os rapazes lavavam-se ali perto, Mountolive ouvia
sons de águas correntes. Dentro de alguns minutos pediria licença e
retirar-se-ia a fim de vestir um fato branco para jantar. Bebia e falava com o
inválido na sua voz baixa e melodiosa. Parecia-lhe uma coisa terrível e
imprópria ser o amante da mulher; o facto de Leila ser capaz de dissimular tão
facilmente cortava-lhe a respiração. (A sua voz fria e doce, etc., etc.; tentaria
não se deixar absorver tão completamente por ela. Estremeceu e sorveu a bebida).
Tinha sido difícil encontrar o caminho do solar para onde se dirigia com uma
carta de apresentação; a estrada para carros não ia além do rio e era
necessário utilizar daí para diante cavalos para alcançar a casa erigida no
meio dos canais. Teve de esperar quase uma hora antes de um transeunte amável
lhe oferecer um cavalo que o levou ao seu destino. Nesse dia não estava em casa
ninguém além do inválido. Mountolive notou divertido que ao ler a carta de
apresentação, redigida no estilo floreado dos árabes, o inválido murmurava as tradicionais
respostas que a delicadeza impõe aos cumprimentos que o autor da missiva lhe endereçava,
tal como se aquele se encontrasse presente. Depois, levantando a cabeça, considerou
o jovem inglês com simpatia. Ficará connosco; é a única maneira de melhorar o seu
conhecimento da língua árabe. Dois meses, se assim desejar. Os meus filhos falam
inglês e terão muito prazer em conversar consigo; minha mulher também. Para eles
será uma alegria ver por aqui uma cara nova. E o meu querido Nessim está no seu
último ano de Oxford.
Orgulho e prazer brilharam fugazmente
nos olhos afundados e depois foi novamente o habitual olhar de dor e tristeza. A
doença suscita o desprezo. Um doente não ignora esse facto. Mountolive aceitou,
e renunciando ao gozo de uma licença na pátria obteve permissão para ficar dois
meses em casa deste cavalheiro copta. Era um abandono de tudo o que lhe fora habitual
este ingresso numa existência familiar fundada e nutrida na pompa inconsciente de
um feudalismo que se ia filiar na Idade Media ou mais longe ainda. O mundo de Burron,
Beckford, Ladv Hester... Será que então eles existiam? Mas aqui, na posição vantajosa
de alguém integrado na tela que a sua própria imaginação pintou, o exótico
pareceu-lhe subitamente normal. A sua poesia vinha do facto de essa vida ser vivida
naturalmente. Mountolive, que já dominava a língua, sentiu-se contudo pela primeira
vez penetrar num país estrangeiro com os seus estranhos costumes. Sentiu o que se
sente em casos análogos, nomeadamente o vertiginoso prazer de perder uma personalidade
antiga para ganhar outra nova. Tinha por assim dizer a impressão de que os contornos
da sua pessoa se dissolviam. Estará nisso o verdadeiro sentido da educação? Tinha
começado a transplantar um enorme e intacto mundo da sua imaginação para o solo
da sua nova vida. A família Hosnani era variada em espécies. O gracioso Nessim e
sua mãe pertenciam ambos ao mesmo mundo intenso da inteligência e da sensibilidade.
Ele, o filho mais velho, estava sempre pronto para servir a mãe, fosse para lhe
abrir uma porta ou levantar um lenço caído. Falava perfeitamente inglês e francês,
era impecável de maneiras e o seu corpo era elegante e potente. Em frente destes,
iluminados pela luz das velas, viam-se os outros dois: o inválido nas suas cobertas
e o filho mais novo, grosseiro e abrutalhado como um mastim e com um ar indefinível
de estar sempre pronto para lutar. De compleição pesada e feio, era contudo gentil;
mas pelo seu olhar de adoração percebia-se perfeitamente que amava o pai acima de
tudo. A simplicidade brilhava-lhe nos olhos, era serviçal, e quando o trabalho nas
terras o não afastava de casa estava sempre pronto para dispensar os serviços do
criado silencioso que esperava por detrás da cadeira de rodas, servindo ele próprio
o pai com um orgulho radiante, feliz mesmo, quando o carregava nos braços, com
uma espécie de avidez ciumenta, para conduzi-lo aos lavabos. Reservava para sua
mãe o mesmo olhar de orgulho e maldade infantil que se descobria nos olhos do
enfermo. Contudo, embora os irmãos estivessem assim divididos como ramos de oliveira,
pertenciam ao mesmo tronco e amavam-se profundamente, pois na verdade um era complemento
do outro, sendo um forte onde o outro era fraco. Nessim detestava o derramamento
de sangue, o trabalho manual e as maneiras rudes; Narouz sentia prazer em tudo isso.
E Leila? Mountolive considerava-a um belo enigma, quando teria podido, se tivesse
mais experiência, reconhecer na sua naturalidade uma perfeita simplicidade de espírito
e na sua natureza extravagante um temperamento frustrado no seu desenvolvimento
normal e que tinha aceitado de boa mente uma solução de compromisso». In
Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Mountolive, 1958, Publicações dom
Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
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