sábado, 6 de fevereiro de 2016

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «Oferece-me a sua face para que a beije e procuro aproximar o meu beijo à comissura dos seus lábios, ao mesmo tempo que estendo a mão aos dois cabrestos arturianos…»

jdact

«(…) Com Figueiro d’Amaral tive um debate quase furioso no encontro arturiano de Saint-Malo quando eu defendi a tese de que o ciclo de Chrétien de Troyes testemunha a crise da cavalaria ou o início da irreversível crise da cavalaria e que só a chamada literatura cavalheiresca manteve com vida o mito do cavaleiro medieval até que foi definitivamente substituído pelo mercenário renascentista e mesmo admitindo que alguma vez houvesse cavaleiros como aqueles que foram descritos literariamente, estiveram sempre muito próximos de ser mercenários, como é o caso do Cid, invento que por vezes creio historificado e outras meramente literaturizado pelo não menos eminente don Ramon Menéndez Pidal. Que zombasse sobre a existência real ou literária do Cid indignou o português, que começou a gritar disparates como, por exemplo, que ele, apesar de ser marxista-leninista, insistiu, marxista-leninista, acreditava na existência histórica do Cid e na honesta historicidade do Cantar del Mio Cid. Disse-lhe que eu não era marxista-leninista, mas sim só aproximadamente popperiano e não acreditava nem deixava de acreditar na existência real biológica ou literária do Cid, antes pelo contrário. Quando recuperei o meu assento junto de Myrna senti um beliscão no antebraço e um sussurro junto da minha orelha: desde quando é que tu és popperiano? Disse-o só para o fo… Quanto ao outro, o extremado Estremoz, repetia até à exaustão que era meu discípulo, apesar de se ter doutorado pela Universidade de Salamanca, e tudo isso porque fiz parte do júri do seu doutoramento e também do que lhe outorgou a cátedra, votando a seu favor porque a tese de doutoramento não era má e os meus votos para a sua cátedra outorgavam-me os de outros dois membros do júri quando eu quisesse beneficiar um dos meus discípulos optantes igualmente à cátedra. Sabia, pois, que mal me visse no cais, o grande cretino do Estremoz García se baixaria em inclinada reverência e exclamaria: salve, divino mestre!
E o menéndezpidalianomarxistaleninista português faria com a mão uma pistola e dava-me dois tiros, enquanto os olhos de Myrna me diriam: não os pude evitar. Mas alguma coisa transtornou as nossas vidas porque, à medida que se aproximam, os três olham-me cada vez mais sorridentes e já desembarcados não há salve nem tiros, nem os olhares cúmplices de Myrna, como se alguma coisa tivesse mudado em mim, não neles, e a minha nova natureza os forçasse a alterar a pose em presença de um ilustre professor já embalsamado e Myrna capta-o melhor que ninguém porque adopta compostura de récita teatral e exclama: Deus salve Carlos Magno, aquele por quem a alegria e o prazer regressou à nossa corte! Deus salve o mais bem-aventurado dos criados por Deus ! Era mais ou menos um fragmento coral do final de Erec e Enide, com o acrescento da alusão ao Prémio Carlomagno, e agradeço com um sorriso que procuro que seja simpático. Oferece-me a sua face para que a beije e procuro aproximar o meu beijo à comissura dos seus lábios, ao mesmo tempo que estendo a mão aos dois cabrestos arturianos, que ma apertam com vontade de ma amputar. Como é que se come por aqui? Myrna tinha chegado com uma das suas fomes míticas e era inútil desviá-la desta obsessão quando o corpo lhe pedia alimento e calorias, pelo que ilustrei-a sobre o digno jantar que a esperava no hotel, tendo em conta que o seu funcionamento estava em fase experimental e em certo sentido tinha-se esforçado para receber a minha homenagem. Ocupa-nos tanto o cérebro o ruído do rodar das malas sobre o empedrado que não fica espaço mental para urdir uma conversa e as sombras não ajudam a que os meus olhos ou os de Myrna transmitam uma mensagem suficiente. Mas o seu meio-sorriso revela-me que está consciente de que há uma conversa muda entre nós e que se tornaria explícita mal superássemos os obstáculos da fome, do português e do cretino do meu falso discípulo falsamente predilecto. Recordei-a nua, acentuando com as suas mãos a tenacidade dos seus seios, despreocupada da humidade quente do seu sexo loiro e não fui capaz de juntar a imagem com o seu tempo ou com o seu exacto congresso, ou talvez fosse o ícone erótico que sugeria a história dos nossos encontros arturianos acamados». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT