sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O Manual dos Inquisidores. António Lobo Antunes. «Por aqui senhor engenheiro os divórcios por aqui com o lustre pingando sombras de vidro na toalha, saltei o canteiro de estrelícias, saltei as petúnias, a porta da capela encontrava-se aberta, os círios oscilavam nos arcos»

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Qualquer palhaço que voe como um pássaro desconhecido
«E ao entrar no tribunal em Lisboa era na quinta que pensava. Não na quinta de agora com as estátuas do jardim quebradas, a piscina vazia, o capim que devorava os canis e destroçara os canteiros, a grande casa destelhada onde chovia no piano com o retrato autografado da rainha, na mesa de xadrez a que faltavam peças, nos rasgões da alcatifa e na cama de alumínio que armei na cozinha, encostada ao fogão, para um sono afligido toda a noite pelas gargalhadas dos corvos ao entrar no tribunal em Lisboa não pensava na quinta de agora mas na casa e na quinta do tempo do meu pai quando Setúbal (uma cidade tão insignificante como uma aldeia de província, de luzes a dançarem em torno do coreto numa vibração de trevas, laceradas pelo desespero dos cães) ainda não chegara ao portão e aos salgueiros do muro e descia rio adentro num atropelo de traineiras e tabernas, Setúbal onde a governanta me levava às compras aos domingos de manhã arrastando-me pelo cotovelo sob o alvoroço dos pombos a casa e a quinta do tempo do meu pai de escadaria ladeada de anjos de granito e dos jacintos que cresciam ao longo das paredes, uma agitação de criadas nos corredores do mesmo modo que as pessoas se agitavam no vestíbulo do tribunal (era Julho e as árvores da rua Marquês da Fronteira torciam-se ao sol contra as fachadas) em cachos que se agrupavam e desfaziam em torno dos elevadores numa pressa ansiosa e nisto o meu advogado no meio das testemunhas e dos réus e dos oficiais de diligências a agarrar-me a camisola e a apontar-me os degraus Por aqui senhor engenheiro os divórcios por aqui e eu indiferente ao tribunal, indiferente a ele, a lembrar-me daquele Julho antigo em Palmela (devia ter quinze ou dezasseis anos porque construíam a garagem nova junto às faias, o tractor girava a seguir à horta e as pás de ferro do moinho chiavam no calor) em que ouvi cochichos e passos e murmúrios na capela e não eram galinhas não eram rolas não eram gralhas era gente, talvez os ciganos de Azeitão a roubarem a santa e os castiçais de talha (mulheres de saias negras, homens soprando cafeteiras ao lume, magras mulas tristíssimas) e peguei numa das bengalas do vaso de louça da entrada e atravessei a trote a sala de jantar Por aqui senhor engenheiro os divórcios por aqui com o lustre pingando sombras de vidro na toalha, saltei o canteiro de estrelícias, saltei as petúnias, a porta da capela encontrava-se aberta, os círios oscilavam nos arcos e não dei com os ciganos de Azeitão (mulheres de saias negras, homens soprando cafeteiras ao lume, magras mulas tristíssimas) dei com a cozinheira estendida de costas no altar, de roupa em desordem e avental ao pescoço, e o meu pai escarlate, de cigarrilha na boca e chapéu na cabeça, segurando-lhe as ancas a olhar para mim sem surpresa nem zanga, e nesse domingo depois de responder aos gritos ao latim do padre, à frente do caseiro, da governanta, das criadas, o meu pai a acender cigarrilhas durante a comunhão (o vento remexia as dálias secas e os eucaliptos do pântano, que aumentavam e diminuíam segundo o respirar dos limos) chamou-me ao escritório de janela para a estufa das orquídeas e o sopro do mar Oxalá a sua esposa não se atrase senhor engenheiro senão o juiz marca-nos o divórcio para as calendas gregas (e contudo não se viam gaivotas, não se vêem gaivotas deste lado da serra) e levantou-se, contornou a secretária, tirou o isqueiro a gasolina do colete e pousou-me a mão aberta na nuca no gesto com que avaliava os borregos e as crias do estábulo Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão. o meu pai de mão aberta na nuca da filha do caseiro, uma adolescente descalça, suja, ruiva, suspensa das tetas das vacas acocorada num banquinho de pau, a filar-lhe o cachaço e a obrigá-la a dobrar-se para a manjedoura sem largar os baldes do leite, o meu pai outra vez escarlate a esmagar-lhe o umbigo nas nádegas, de cigarrilha acesa apontada às vigas do tecto sem que a filha do caseiro protestasse, sem que o caseiro protestasse, sem que ninguém protestasse ou imaginasse protestar, o meu pai tirando a mão da minha nuca e designando com desprezo a cozinha, os quartos das criadas, o pomar, a quinta inteira, o mundo Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão». In António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores, 1996, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2005, ISBN 972-202-858-8.

Cortesia PdQuixote/JDACT