domingo, 21 de fevereiro de 2016

Ensaio sobre a Lucidez José Saramago. «Perguntou à mesa se estava de acordo, todos disseram que sim, com a ressalva de ter requerido o delegado do p.d.d. que a decisão ficasse exarada na acta para prevenir impugnações»

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«Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze depois de fechar com violência o guarda-chuva empapado e despir uma gabardina que de pouco lhe havia servido durante o esbaforido trote de quarenta metros desde o lugar onde havia deixado o carro até à porta por onde, com o coração a saltar-lhe da boca, acabava de entrar. Espero não ter sido o último, disse para o secretário que o aguardava um pouco recolhido, a salvo das bátegas que, atiradas pelo vento, alagavam o chão. Ainda falta o seu suplente, mas estamos dentro do horário, tranquilizou o secretário, A chover desta maneira será uma autêntica proeza se cá chegarmos todos, disse o presidente enquanto passavam à sala onde se realizaria a votação. Cumprimentou primeiro os colegas da mesa que actuariam como escrutinadores, depois os delegados dos partidos e seus respectivos suplentes. Teve o cuidado de usar para todos as mesmas palavras, não deixando transparecer na cara nem no tom de voz quaisquer indícios que permitissem perceber as suas próprias inclinações políticas e ideológicas. Um presidente, mesmo de uma assembleia eleitoral tão comum como esta, deverá guiar-se em todas as situações pelo mais estrito sentido de independência, ou, por outras palavras, guardar as aparências. Além da humidade que tornava mais espessa a atmosfera, já de si pesada por ser interior a sala, apenas com duas janelas estreitas que davam para um pátio sombrio mesmo em dias de sol, o desassossego, empregando a comparação vernácula, cortava-se à faca. Teria sido preferível adiar as eleições, disse o delegado do partido do meio, p.d.m., desde ontem que está a chover sem parar, há derrubamentos e inundações por toda a parte, a abstenção, desta vez, vai subir em flecha. O delegado do partido da direita, p.d.d., fez um gesto concordante com a cabeça, mas considerou que a sua contribuição para a conversa deveria revestir a forma de um comentário cauteloso, Obviamente não minimizo esse risco, contudo penso que o acendrado espírito cívico dos nossos concidadãos, em tantas outras ocasiões demonstrado, é credor de toda a nossa confiança, eles são conscientes, oh sim, absolutamente conscientes, da transcendente importância destas eleições municipais para o futuro da capital. Dito isto, um e outro, o delegado do p.d.m. e o delegado do p.d.d., com ar meio céptico, meio irónico, viraram-se para o delegado do partido da esquerda, p.d.e., curiosos de saber que espécie de opinião seria ele capaz de produzir. Nesse preciso instante, salpicando água por todos os lados, irrompeu na sala o suplente da presidência, e, como seria de esperar, visto que ficava completado o elenco da mesa da assembleia, o acolhimento foi, mais do que cordial, caloroso. Não chegámos portanto a conhecer o ponto de vista do delegado do p.d.e., porém, avaliando por alguns antecedentes conhecidos, é de presumir que não deixaria de exprimir-se segundo a linha de um claro optimismo histórico, numa frase como esta, por exemplo, Os votantes do meu partido são pessoas que não se amedrontam por tão pouco, não é gente para ficar em casa por causa de quatro míseros pingos de água que caem das nuvens. Na verdade, não eram quatro pingos míseros, eram baldes, eram cântaros, eram nilos, iguazús e iangtsés, mas a fé, abençoada seja ela para todo o sempre, além de arredar montanhas do caminho daqueles que do seu poder se beneficiam, é capaz de atrever-se às águas mais torrenciais e sair delas enxuta. Constituiu-se a mesa, cada um no lugar que lhe competia, o presidente assinou o edital e ordenou ao secretário que fosse afixá-lo, como a lei determina, à porta do edifício, mas o mandado, dando prova de uma sensatez elementar, fez notar que o papel não se aguentaria na parede nem um minuto, em dois améns se lhe esborrataria a tinta, ao terceiro o levaria o vento. Coloque-o então dentro, aonde a chuva não o alcance, a lei é omissa neste particular, o importante é que o edital fique afixado e à vista. Perguntou à mesa se estava de acordo, todos disseram que sim, com a ressalva de ter requerido o delegado do p.d.d. que a decisão ficasse exarada na acta para prevenir impugnações. Quando o secretário voltou da sua húmida missão, o presidente perguntou-lhe como estava o tempo e ele respondeu, encolhendo os ombros, Na mesma, como a lesma, Há algum eleitor lá fora, Nem sombra dele. O presidente levantou-se e convidou os membros da mesa e os representantes dos partidos a acompanhá-lo na revista à câmara de voto, que se viu estar limpa de elementos que pudessem vir a desvirtuar a pureza das escolhas políticas que ali iriam ter lugar ao longo do dia. Cumprida a formalidade, voltaram aos seus lugares para examinar os cadernos de recenseamento, que também encontraram limpos de irregularidades, lacunas e suspeitas. Tinha chegado o momento grave em que o presidente destapa e exibe a urna perante os eleitores para que possam certificar-se de que está vazia, a fim de que amanhã, sendo necessário, sejam boas testemunhas de que nenhuma acção delituosa havia introduzido nela, pela calada da noite, os votos falsos que corromperiam a livre e soberana vontade política dos cidadãos, que não se repetiria aqui uma vez mais aquela histórica fraude a que se dá o pitoresco nome de chapelada, cuja, não o esqueçamos, tanto se poderá cometer antes como durante ou depois do acto, conforme a ocasião e a eficiência dos seus autores e cúmplices». In José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, Editorial Caminho, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-211-608-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT